SEGUNDA PARTE
Médium:
FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
Capítulo 11
Na casa de saúde, Marina
exigia cuidado, vigilância. Entre os bastidores da luta, empenhávamo-nos nisso,
Moreira e nós, e, por fora, Cláudio e Salomão entrelaçavam energias, garantindo
cooperação.
O apoio espiritual,
conjugado à Medicina, funcionava com segurança. Mesmo assim, complicavam-se os
problemas em derredor.
Nemésio e Márcia, após
cinco semanas no clima da serra, retornaram ao Rio, algo modificados pela
aventura. Ela interessada em ligação definitiva; ele, hesitante. Instado a
patrocinar-lhe o desquite, recuara, de pronto. Tinha medo. Não receava, porém,
as gralhas do mundo social. Temia a si próprio. Aquele mês de folga, nos braços
da mulher que não esperava, insuflara-lhe inquietação. Não que Márcia perdesse
para ele os encantos com que o seduzira.
Assustava-se consigo mesmo,
junto dela. Nas excursões, chamava-lhe “Marina”. Acordava, alta noite, supondo-se
com a jovem que aceitara por noiva, sonhava reencontra-la, qual se estivessem
os dois na meninice, e, sonâmbulo, costumava formular confissões de amor, como
nos tempos em que Beatriz
se derreava no leito.
Por várias vezes, fomos arranca-lo
dessas crises, movimentando recursos magnéticos, anotando-lhe as sensações de
alívio, ao verificar que Márcia, experiente e maternal, sabia tolera-lo, compreende-lo...
A esposa de Cláudio, a seu
turno, não obstante se propusesse cativa-lo, reconhecia o obstáculo. Percebia
claramente que Nemésio trazia a menina fixada à lembrança. O negociante amava-lhe
a filha, pertencia-lhe pela alma, embora não lhe recusasse apreço e ternura. De
começo, quis estrilar. Em seguida, calculou, como de hábito, e concluiu que não
se achava pessoalmente num caso de amor e sim numa transação, cujas vantagens
não se dispunha a perder. No fundo, pouco lhe importava que ele adorasse a
moça. Aspirava a prende-lo, ganhar-lhe a fortuna e a confiança.
Para isso engenhava todos
os modos de se fazer necessária. Ordens atendidas, refeições prediletas, gotas estimulantes
na hora certa, chinelas a mão...
Solicitado por ela a optar
pelo casamento em país que aprovasse o divórcio, Nemésio prometia satisfaze-la;
entretanto, de volta ao Rio, preferiu mantê-la em casa de Selma, a companheira
que residia na Lapa, mencionando Gilberto.
Importante não se
reunissem de vez, até que lhe conseguisse a mudança. Organizava
interesses comerciais em
cidade do sul, para remove-lo. Que
Márcia aguardasse, e Márcia esperava, apesar de
se acharem ambos em conjunção incessante. Passeios, jantares, diversões,
noitadas...
Gilberto, no entanto,
parecia a si mesmo desacoroçoado, abatido. Criança sem guia, navegante sem
bússola. Sem o menor incentivo ao trabalho e sem âncoras de ideal que lhe
governassem os sentimentos, esbanjava o dinheiro paterno. Farra e uísque. Muita
vez, embriagado, falava em suicídio, referindo-se a Marina, distante.
Sentia-se derrotado,
infeliz. Aqui e ali, ouvia apontamentos desairosos em torno do pai e de Dona
Márcia, através de amigos, mas trazia ainda uns restos de nobreza para rechaçar
aquilo que considerava invencionice e maledicência. Sabia o genitor descansando
e não ignorava que Dona Márcia demandara igualmente o repouso. E, para defende-los,
esbravejava frenético, quase sempre bêbado e atuado por alcoólatras
desencarnados, que o manobravam facilmente como se maneja uma taça.
Todavia, no centro das
derrocadas, o Espírito Félix reconstruía...
Após dois meses de
tratamento, Marina regressou ao Flamengo, resguardada pelo carinho paterno. Em
horas breves, inteirou-se quanto à nova situação.
Perdera a assistência
maternal e não desconhecia os empeços com que devia contar, a fim de reerguer-se
na profissão. Informara-se, por intermédio de enfermos recuperados, que se
tornava habitualmente muito difícil a obtenção de emprego para egressos de
hospício.
A princípio, alimentava
complexos, sofria. Contudo, encontrara um pai cuja grandeza de coração até ali
ignorara e uma fé que lhe reabilitava a esperança.Cláudio cercou-a
de meiguice e bondade.
Repletava-se o apartamento de mimos e flores, e os textos espíritas, lidos por
vezes com lágrimas, lhe infundiam a consoladora certeza nas verdades e nas
promessas do Cristo, que passara a aceitar por mestre da alma. Acolheu a
amizade de Salomão, qual se lhe fosse filha, e inscreveu-se entre aqueles que
constituíam agora para Cláudio a família espiritual.
Interessou-se por singelo
serviço beneficente, mantido em favor de pequeninos desamparados, junto de
senhoras consagradas ao socorro de irmãs infelizes. E quando o genitor convidou-a
para que se afeiçoassem ao culto semanal do Evangelho no lar, recolheu,
entusiasmada, a sugestão, rogando a Nogueira instalassem Dona Justa, viúva e
sozinha, em definitivo, junto deles em casa. A antiga servidora, contente, foi guindada
à condição de governanta, com a segurança de parenta feliz.
A vivenda ressumava
tranqüilidade, não obstante, Moreira e nós outros prosseguíamos atentos na
defensiva. Conversações e leituras,
tarefas e planos surgiam por flores auspiciosas que Félix, de quando em quando,
vinha ver, encantado, partilhando-nos júbilos e orações.
Em torno de Nemésio e de
Dona Márcia, o silêncio. Pai e filha empenhavam-se no propósito de olvidá-los, mas
Gilberto...
Amigos solicitavam para
ele compaixão e socorro. O rapaz afundava-se. Largado, abatido. Pileques,
correrias. Se Cláudio e Marina não pudessem protegê-lo, pelo menos lhe
providenciassem a hospitalização.
Como negar-lhe apoio?
Cláudio notou que a filha
ainda amava o rapaz enternecidamente, ardentemente, e decidiu-se a respeitar-lhe
as decisões.
Após entendimentos
ponderosos, atendendo às indicações de Marina, o bancário escolheu a ocasião
que lhe pareceu favorável e abraçou-o numa churrascaria do Leme. Partilharam
lanche rápido e Nogueira convidou-o para jantar no dia seguinte. Ele e a filha esperá-lo-iam
em casa.
Torres filho sorriu e
comprometeu-se. Seis meses haviam corrido sobre a transformação de Cláudio, e
maio, ao entardecer, abanava o Rio com as brisas refrigerantes que desembocavam
do mar.
Gilberto compareceu no
momento previsto. Tristonho, sóbrio. De começo até à refeição, reportou-se a
banalidades, sofrimentos, malogros. Confessava-se fracassado, deprimido. A
pouco e pouco, no entanto, compenetrou-se de que se achava entre dois corações
que lhe aprumavam os sentimentos e elevou o nível da palavra.
O anfitrião interferia na
conversa com a prudência de um pai e a moça exprimia-se com segurança,
entremostrando nos olhos o amor e a esperança inextintos.
O visitante
experimentava-se reconfortado. Conjeturava-se mergulhado num banho de forças
balsâmicas. Imaginava-se de retorno ao lar antigo, refletia na mãezinha que a morte
arrebatara, e chorou...
O chefe da família,
comovido quanto Moreira e nós, diante daquela explosão de lágrimas,
acariciou-lhe a cabeça e perguntou por que lhes abandonara a amizade. Gilberto
desabafou, noticiando que o genitor o chamara a contas. Denunciara-lhe Marina
por jovem desencaminhada. Asseverara-lhe que ele próprio, Nemésio, lhe
desfrutara o carinho, descrevera-lhe intimidades, inteirara-o de que a
escolhida se desmoralizara, que não servia para casar e ameaçara-o,
constrangendo-o, por fim, a alegar que desistia de futura ligação com ela, por
sabê-la doente...
Afastara-se por
semelhantes razões, embora continuasse amando a moça, com quem, aliás,não tinha
a intenção de se reconciliar, levando em conta as acusações havidas...
Marina, acabrunhada, não
confirmou, nem se defendeu. Restringiu-se a chorar discretamente, enquanto
Cláudio se esforçava por harmonizar os dois corações
desavindos.
Moreira, que assumira
apaixonadamente a defesa da menina, perdeu a calma. Retomou a insolência de
que desertara e clamou para mim, em voz alta, que, apesar de possuir seis
meses de Evangelho, sentia muita dificuldade para não reunir a turma dos
companheiros de outro tempo a fim de punir o velho Dom Juan,com o rigor de
meirinho implacável.
Apreensivo, roguei a ele
se calasse por amor ao bem que nos propúnhamos realizar. Moreira
assustou-se ao me ouvir a recomendação incisiva. Expliquei-lhe que,nas
imediações, irmãos infelizes teriam ouvido a intenção que ele formulara equantos
simpatizassem com a ideia, com toda a certeza,demandariam a residência dos
Torres, sondando brechas.
Vali-me do ensejo para
transmitir-lhe avisos que me foram extremamente úteis, nas minhas primeiras
experiências de homem desencarnado em processo reeducativo.
Disse-lhe que aprendera de
vários benfeitores que o mal não merece qualquer consideração além daquela
que se reporte à corrigenda. Entretanto, se ainda não conseguimos impedir-lhe o
acesso ao coração, na forma de sentimento, é forçoso não se pense nele;
contudo, se não contamos com recursos para arredá-lo imediatamente da cabeça, é
imperioso evitá-lo na palavra, a fim de que a idéia infeliz, já articulada, não
se faça agente vivo de destruição, agindo por nossa conta e independentemente
de nós. Salientei que o ambiente ali jazia limpo de influências indesejáveis; no
entanto, ele, Moreira, falara abertamente e companheiros não distantes,
interessados em nosso regresso à crueldade mental, teriam assinalado a sugestão...
Gilberto despedira-se.
Moreira, nos apuros do
aprendiz que reconhece a prova errada, perguntava o que fazer, mas não tive
dúvida. Esclarecemos que habitávamos agora o plano espiritual, onde
pensamento e verbo adquirem muito mais força de expressão e de ação que no
plano físico, e que não nos restava outra alternativa senão seguir, ao lado de
Torres filho, de maneira a observar até que ponto se alargara o perigo, a fim de
remediá-lo.
O amigo, inquieto, pela
primeira vez, depois de muito tempo, deixou o lar dos Nogueiras e
acompanhou-me. Ambos nós, de carro, faceando com o jovem, absorto...
O rapaz entrou em casa,
lembrando Marina modificada... Aqueles cabelos penteados com singeleza, o rosto
tratado sem excessos, os modos e as frases sensatas e Cláudio a
informar, sem queixa, que Dona Márcia, ultimamente, andava sempre fora para
descanso, o clima doméstico destilando tranqüilidade...
Tudo aquilo era para ele coisa nova, sensação nova... Sentia-se perturbado, experimentava remorsos pela franqueza de que se utilizara, sem saber se fora ciumento ou descortês.
O visitante
experimentava-se reconfortado. Conjeturava-se mergulhado num banho de forças
balsâmicas. Imaginava-se de retorno ao lar antigo, refletia na mãezinha que a morte
arrebatara, e chorou...
O chefe da família,
comovido quanto Moreira e nós, diante daquela explosão de lágrimas,
acariciou-lhe a cabeça e perguntou por que lhes abandonara a amizade. Gilberto
desabafou, noticiando que o genitor o chamara a contas. Denunciara-lhe Marina
por jovem desencaminhada. Asseverara-lhe que ele próprio, Nemésio, lhe
desfrutara o carinho, descrevera-lhe intimidades, inteirara-o de que a
escolhida se desmoralizara, que não servia para casar e ameaçara-o,
constrangendo-o, por fim, a alegar que desistia de futura ligação com ela, por
sabê-la doente...
Afastara-se por
semelhantes razões, embora continuasse amando a moça, com quem, aliás,não tinha
a intenção de se reconciliar, levando em conta as acusações havidas...
Marina, acabrunhada, não
confirmou, nem se defendeu. Restringiu-se a chorar discretamente, enquanto
Cláudio se esforçava por harmonizar os dois corações
desavindos.
Moreira, que assumira
apaixonadamente a defesa da menina, perdeu a calma. Retomou a insolência de
que desertara e clamou para mim, em voz alta, que, apesar de possuir seis
meses de Evangelho, sentia muita dificuldade para não reunir a turma dos
companheiros de outro tempo a fim de punir o velho Dom Juan,com o rigor de
meirinho implacável.
Apreensivo, roguei a ele
se calasse por amor ao bem que nos propúnhamos realizar. Moreira
assustou-se ao me ouvir a recomendação incisiva. Expliquei-lhe que,nas
imediações, irmãos infelizes teriam ouvido a intenção que ele formulara equantos
simpatizassem com a ideia, com toda a certeza,demandariam a residência dos
Torres, sondando brechas.
Disse-lhe que aprendera de
vários benfeitores que o mal não merece qualquer consideração além daquela
que se reporte à corrigenda. Entretanto, se ainda não conseguimos impedir-lhe o
acesso ao coração, na forma de sentimento, é forçoso não se pense nele;
contudo, se não contamos com recursos para arredá-lo imediatamente da cabeça, é
imperioso evitá-lo na palavra, a fim de que a idéia infeliz, já articulada, não
se faça agente vivo de destruição, agindo por nossa conta e independentemente
de nós. Salientei que o ambiente ali jazia limpo de influências indesejáveis; no
entanto, ele, Moreira, falara abertamente e companheiros não distantes,
interessados em nosso regresso à crueldade mental, teriam assinalado a sugestão...
Moreira, nos apuros do
aprendiz que reconhece a prova errada, perguntava o que fazer, mas não tive
dúvida. Esclarecemos que habitávamos agora o plano espiritual, onde
pensamento e verbo adquirem muito mais força de expressão e de ação que no
plano físico, e que não nos restava outra alternativa senão seguir, ao lado de
Torres filho, de maneira a observar até que ponto se alargara o perigo, a fim de
remediá-lo.
O amigo, inquieto, pela
primeira vez, depois de muito tempo, deixou o lar dos Nogueiras e
acompanhou-me. Ambos nós, de carro, faceando com o jovem, absorto...
O rapaz entrou em casa,
lembrando Marina modificada... Aqueles cabelos penteados com singeleza, o rosto
tratado sem excessos, os modos e as frases sensatas e Cláudio a
informar, sem queixa, que Dona Márcia, ultimamente, andava sempre fora para
descanso, o clima doméstico destilando tranqüilidade...
Instintivamente, tomou a direção do quarto que a jovem ocupara e onde a vira, desfalecente...
Queria recordar-se, refletir. Seguíamo-lo, obedecendo às disposições do tapete macio; entretanto, ao rodar, de leve, a maçaneta, como quem não pretendia apartar-se do sonho, viu, assombrado, através da porta entreaberta, que o genitor e Dona Márcia se beijavam e, em torno deles, sobressaía, para a nossa visão espiritual, a chusma dos amigos conturbados, para cujos serviços Moreira apelara, inconscientemente...
Aqueles vampirizadores, registrando a indireta, mostravam-se em atividade, metamorfoseando simples impulsos de afeto do par outoniço em voluptuoso arrebatamento.
Instintivamente, tomou a direção do quarto que a jovem ocupara e onde a vira, desfalecente...
Capítulo 10
Precedendo
o descanso, entendi-me a sós com Félix, que me aprovou o desejo de
continuar prestando assistência a Nogueira e à filha.
Cientificara-se
o instrutor de todos os sucessos em curso, mas solicitava minudências. Ouviu-me
a exposição, preocupado, e deduziu que as dificuldades de Cláudio e Marina
atingiam o climax.
Necessário
apoiá-los, socorrê-los. Mediante os compromissos em que se emaranhavam,
impossível alinhar previsões.
O
benfeitor falava sereno. Para mim, porém, muito fácil verificar-lhe o suplício oculto.
De quando em quando, lágrimas lhe umedeciam os olhos, que ele, padrãode
coragem, não chegava a derramar.
Mesmo
assim, contendo a emotividade, sugeriu providências e articulou planos.Que eu
voltasse, encetando a nova etapa de assistência, junto de Marina, em Botafogo. Apreciava
em Moreira um cooperador diligente que o tempo se incumbiria de valorizar; todavia,
supunha trabalho complexo demais para ele sozinho o encargo de manter a jovem
doente livre dos vampirizadores, cujo número aumentava com as atitudes inesperadas
de Márcia, estimulando Nemésio a uma aventura que ralava pela demência. Que me
reunisse, desse modo, a Moreira, alentasse Marina, estendesse os braços para
Cláudio e, quanto nos fosse possível, amparasse Márcia e os dois Torres, sempre
que nos propiciassem os meios para isso. Prometeu que nos acompanharia, confiando
na Bênção do Senhor, que a tudo prevê e provê nas horas justas.
Compreendi.
Félix sofria conformado. Chorava por dentro.
Acatando-lhe
as instruções, no dia seguinte dispus-me ao retorno. Antes, porém, de
empreender o regresso, porque me interessasse pelos assuntos de sexo e
penalogia, refletindo nas enfermidades obscuras que enxameiam na Terra, o
próprio Félix conduziu-me, de passagem, a pequeno palácio, localizado no centro
da instituição. «Casa da Providência», esse o nome com que o edifício é
designado.
Curioso
foro do «Almas Irmãs», onde dois juizes funcionam, atendendo aos petitórios
formulados pelos integrantes da comunidade, com respeito aos irmãos reencarnados
na esfera física.
De
entrada, faceando com dezenas de pessoas que iam e vinham, Félix, sempre cumprimentado com apreço por todos os passantes, explicou-me que ali somente se
organizavam processos de auxílio e corrigenda, relacionados aos companheiros
destinados à reencarnação e aos que já se achassem no estágio físico,
espiritualmente ligados aos interesses do instituto.
Renascimentos,
berços torturados, acidentes da infância, delitos da juventude,dramas
passionais, lares periclitantes, divórcios, deserções afetivas, certas modalidades
de suicídio tanto quanto moléstias e obsessões resultantes de abusos sexuais e
uma infinidade de temas co-nexos são aí examinados, segundo as rogativas e as
queixas entregues aos pronunciamentos da justiça. A Casa da Providência apenas
delibera em definitivo nos problemas que se limitem ao «Almas Irmãs»; contudo,
os casos, em maioria, revelam derivações para outros setores.
Nessa
hipótese, as questões são aí discutidas, de começo, seguindo para instâncias
superiores. Ainda assim, os dois magistrados amigos e ele mesmo, Félix, que é
constrangido pela força do cargo a estudar e informar todas as peças, uma por
uma, não decidem só por si. Um conselho constituído por dez orientadores, seis 159 companheiros e quatro irmãs, com
méritos suficientes perante a Governadoria da cidade, opina, através de
assembleias semanais, em todas as recomendações e diligências, aprovando-as ou
contrariando-as, a fim de que as decisões não se comprometam em arbitrariedades. Alegou ,
talvez por humildade, que, em muitas ações, fora esclarecido muito mais pelos
pareceres dos juizes e dos conselheiros que pelo próprio critério, o que lhe
fornecia dobradas razões para respeitá-los.
Clareando
com mais segurança os informes iniciais, voltou a esclarecer que mais da metade
dos autos tramitam na direção de autoridades do Ministério da Regeneração e do
Auxílio que, aliás, primam pela rapidez nos despachos e provimentos.
(...)
Capítulo 9
Rumei,
junto de Neves, para o instituto de renovação que Félix dirigia na esfera espiritual.A
caminho, reconfortava-me ouvindo o companheiro asserenado, contente.
Acompanhava
o restabelecimento de Dona Beatriz, nutrindo júbilos novos. Luzia-lhe
o
olhar povoado de sonhos.
E
contava-me as surpresas da filha recém-chegada ao plano superior. Afeições de
outros tempos, familiares queridos chegavam de longe para felicitá-la. Beatriz concluíra
nobre tarefa — dentre as muitas empresas admiráveis cuja extensão é avaliável
apenas na pátria dos Espíritos —, a tarefa da renovação íntima, obtida à custa
de sacrifícios ignorados. As lágrimas vertidas no silêncio e as dores anônimas lhe
haviam granjeado paz e luz. Mulher desconhecida no mundo, aparentemente escrava
de um marido e de um filho que não a valorizavam, atingira realizações sublimes
em si própria, entesourando no íntimo riquezas inalienáveis para a imortalidade.
Decerto não retornara alçada àglória angélica, mas, tanto quanto era possível,
na condição em que renascera, voltara triunfante.
Regozijava-me
igualmente com as impressões que ouvia e, de propósito, fiz quanto pude para
não ser inquirido acerca dos Torres que, a meu ver, ainda estavam por
aproveitar os merecimentos da missionária de abnegação que os servira. Receava
embaciar o espelho de otimismo em que as esperanças do amigo se retratavam.
Neves, talvez pelas mesmas razões, nada me perguntou, em torno do genro e do
neto que, sem a guardiã maternal, se viam agora entregues a si mesmos.
Fomos
defrontados pelo instituto que demandávamos, O “Almas Irmãs”, assim chamado
pelos fundadores que o levantaram em socorro dos irmãos necessitados
de
reeducação sexual, após a desencarnação, exibia plano extenso de construções.
Conjunto
de linhas harmoniosas e simples, ocupando quatro quilômetros quadrados
de
edifícios e arruamentos, parques e jardins. Autêntica cidade por si.
Inalava-se
tranqüilidade, alegria.
Das
aléias em verde repousante, flores tangidas pelo vento figuravam-se acenos
de
boas-vindas. Rostos sorridentes nos saudavam, de permeio com os semblantes
circunspetos que nos lançavam olhares de simpatia.
Todas
as idades aí se expressavam nos companheiros de ambos os sexos, com os quais
renteávamos, satisfeitos. Bloco de casario sugeria universidades reunidas. Mas,
longe de encontrar representantes da psicopatia ligada às perturbações sexuais,
eram criaturas de aparência hígida as que nos acolhiam, afetuosas.
Neves,
que ali aportara dias antes, interpelado por minha curiosidade, esclareceu que
a agremiação possuía vasta dependência reservada a enfermos; entretanto, que eu
modificasse qualquer conceituação prévia, com respeito à obra ali desenvolvida,
porqüanto os verdadeiros alienados em conseqüência de alucinações emotivas,
trazidas da Terra, permaneciam reclusos em manicômios, sob tratamento indicado,
sempre que apartados das falanges dementadas nas regiões tenebrosas. Acrescentou
que muitos daqueles que nos cumprimentavam, tranquilos, remanesciam de
tragédias passionais, intensamente vividas no mundo; todavia, revelavam-se
agora pacificados e lúcidos, quais as próprias personalidades humanas, depois
de reprimir as crises de insânia, quando se rendem ao desequilíbrio mental.
As
elucidações, no entanto, se interromperam de brusco, porque atingíramos o
ponto
em que nos cabia tomar contacto com Félix, antecipadamente avisado quanto à
nossa presença.
O
instrutor, contudo, prevenia-nos da impossibilidade de abraçar-nos, de pronto.
Aguardar-nos-ia,
mais tarde, na própria residência. Enternecia-nos, entretanto, com grata
surpresa. Belino Andrade, amigo que eu não via há precisamente dez anos, e com
quem convivera, intimamente, em atividades outras, ali se achava a fim de iniciar-nos
no conhecimento da casa.
Abraçou-nos,
fraternal, e, como que retomando os esclarecimentos que Neves
empreendera,
começou dizendo que pisávamos num hospital-escola de suma importância para os
candidatos à reencarnação, Os internados ou estudantes vinham, em maioria, de
estâncias purgatórias, após alijarem as conseqüências mais imediatas dos vícios
e paixões aviltantes, por eles acalentados no plano físico.
Rigorosamente
examinados, atendiam a critério de seleção, nas paragens de angústia expiatória
em que se demoravam, e somente depois de julgados dignos entravam naquele pouso
de refazimento para estações mais ou menos longas de estudo e meditação,
pesquisando as causas e observando os efeitos das quedas de natureza afetiva em
que se haviam precipitado...
Enquanto
nos detínhamos em caminhada agradável, Belino prosseguia informando que todos
eles, depois de suficientemente instruídos, são recambiados ao domicílio
terrestre, onde reencarnam nos ambientes em que faliram e, tanto quanto
possível, nas equipes consangüíneas que lhes impuseram prejuízos ou que lhes
sofreram os danos.
No
Almas Irmãs» obtinham a láurea do conhecimento, na Terra volviam a aplica-lo, através
das dificuldades e tentações da faina material, que nos comprovam a assimilação
das virtudes adquiridas.
Apresentando-nos
praças graciosas ou apreciando aspectos da paisagem, Belino comparou as
finalidades do educandário aos centros de cultura superior,
existentes
no mundo, que conferem títulos acadêmicos para o exercício de funções determinadas,
dentro da especialização profissional, e confrontou a arena terrestre com a
esfera da prática, em que os alunos diplomados são impelidos às experiências e
aos encargos que lhes fixam o mérito ou o demérito. Ali, a mente se rearticulava,
aprendia, refazia, restaurava, mas, de modo geral, sempre no objetivo de
retornar ao mundo, a fim de incorporar em si mesma o valor das lições recebidas.
Acrescentou que a não serem as reencarnações compulsórias, por motivos
prementes, o problema do regresso requeria considerações específicas e preparações
adequadas, razão pela qual muitos companheiros do «Almas Irmãs»se
corporificavam na Terra com programas domésticos preestabelecidos, de maneira a
hospedarem com os seus próprios recursos genésicos os colegas afins.
Dali,
do estabelecimento, esses colegas, que se lhes indicavam na posição de filhos para
o futuro, os resguardavam e defendiam, até a ocasião em que lhes fosse possível
mergulhar no berço terreno, constituindo-se, dessa forma, famílias inteiras, em
edificações e provas redentoras, que, no fundo, representavam, espiritualmente,
o trabalho do instituto, entre os homens, qual ocorre a múltiplas organizações congêneres
e a numerosas associações outras, consagradas à regeneração e ao progresso da
alma, nas esferas de ação espiritual que circundam a Terra.
Aquele
hospital-escola qualificava-se, dessa maneira, na condição de posto avançado da
espiritualidade construtiva, sustentando permanente contacto com a vida humana.
Cada
individualidade reencarnada com vínculos no “Almas Irmãs”, ali se encontra
convenientemente fichada, com todo o histórico do que está realizando na reencarnação
obtida, no qual se lhes vê o balanço dos créditos conquistados e dos débitos
contraídos, balanço esse que é examinável a qualquer momento, para efeito de
auxílio maior ou menor aos interessados, segundo a lealdade que demonstrem na
desincumbência das obrigações a que se empenharam e conforme o esforço espontâneo
que revelem na construção do bem geral.
Indaguei
de Belino se conhecia a média geral de aproveitamento na comunidade e ele
informou que sim, acentuando que, em oitenta e dois anos de existência, o “Almas
Irmãs”, que detinha habitualmente uma população oscilante de cinco a seis mil
pessoas, apontava, no coeficiente de cada cem estudantes, dezoito vitoriosos nos
compromissos da reencarnação, vinte e dois melhorados, vinte e seis muito imperfeitamente
melhorados e trinta e quatro onerados por dívidas lamentáveis e dolorosas.
À
minha nova inquirição sobre se os fracassados eram readmitidos, informou que
ninguém na Terra consegue avaliar a expectativa, a ternura, o esforço e o
sacrifício
com que os amigos desencarnados torcem pelo triunfo ou pelo aprimoramento
parcial dos afeiçoados, em serviço no mundo, e nem imaginar a
desolação
que lhes sacode o ânimo, quando nân logram abraçá-los de volta, mesmo ligeiramente
renovados para o suspirado convívio. Noticiou que os companheiros em malogro
positivo, após a desencarnação, passam, automaticamente, às zonas inferiores,
onde, por vezes, ainda se demoram, por muito tempo, em desequilíbrio ou
devassidão, conquanto nunca percam o devotamento dos amigos ali domiciliados,
que intercedem por eles, junto a colônias dedicadas a outros tipos de
assistência. Sabia, porém, de casos pertinentes a vários rematriculados depois
dessas refregas. Em compensação, exaltou os prêmios atribuídos aos vencedores.
Os aprendizes que se laureiam, através do aproveitamento substancial dos
recursos fornecidos pela organização, ai se honram com admiráveis oportunidades
de trabalho, em estâncias superiores, conforme os desejos que expressem.
Atingíramos,
entretanto, comprido agregado de edifícios, nos quais Andrade informou estarem
localizadas diversas atividades de instrução. Iniciamos vistoria afetuosa.
Os
salões de aula comoviam pelas revelações, e os professores pela simpatia.
O
sexo, por tema central, merecendo o maior apreço.
Os
alunos contemplavam gravuras e croquis que configuravam implementos do
sexo,
com o interesse carinhoso de quem se enternece ante o colo maternal e coma
atenção de quem agradece concessões divinas.
Todos
nos acolhiam denotando cordialidade, sem que a nossa passagem lhes
alterasse
a aplicação; contudo, é de salientar a emoção que me empolgava ao
observar
o crescendo de veneração com que o sexo era homenageado nas diversas faculdades
de ensino, pesquisado e enobrecido em cadeiras diferentes. Matérias professadas
em regime de especialização. Cada qual atendida em construção apropositada.
Sexo e amor. Sexo e matrimônio. Sexo e maternidade. Sexo e estímulo. Sexo e
equilíbrio. Sexo e medicina. Sexo e evolução. Sexo e penalogia. E outras
discriminações.
Disse
Andrade que todas as disciplinas são freqüentadas por grande cópia de
alunos,
e, tentando saber em quais delas se inscrevia o número mais extenso, viera a
saber que os assuntos de «sexo e maternidade, e «sexo e penalogia» retinham proeminência
franca. O primeiro reúne centenas de criaturas que se
endereçam
aos ajustes de lar, na Terra, e o segundo enfeixa enorme quantidade de Espíritos
conscientes que examinam a melhor maneira de infligirem a si próprios determinadas
inibições, para se corrigirem de hábitos deprimentes no curso da reencarnação a
que se dirigem. Muitos chegam a deixar escritas nos arquivos da casa as
sentenças que lavram contra si mesmos, antes de se envolverem nas provações que
consideram necessárias ao aperfeiçoamento e felicidade que demandam.
Tornavam-se
as elucidações de Belino cada vez mais interessantes e refletia, de minha
parte, na extensão das obras da cidade espiritual em que me achava, há quinze
anos, longe de conhecer-lhe todos os monumentos de benemerência e cultura, quando
alcançamos a residência do diretor.
Félix,
em companhia do Irmão Régis, que nos apresentou por substituto eventual dele,
acolheu-nos amavelmente. Admirei-me. Não parecia o amigo que se apequenava no
Rio para compartilhar-nos o trabalho.
Reverenciado
e querido, era ali distinguido dignitário do conhecimento superior,
a
quem a administração de (Nosso Lar» delegara responsabilidades vultosas.
Dirigente
e comandante, pai e irmão. O ambiente no gabinete em que nos alojara, afetuoso,
ressumava simplicidade sem negligência, conforto sem luxo. Por trás da poltrona
singela de que se servia, salientava-se tela de proporções avantajadas, na qual
a mão de pintor exímio gravara o retrato de nobre matrona em prece nas regiões
inferiores. A venerável mulher elevava os braços para• o céu plúmbeo, que
filtrava revérberos de luz qual se lhe respondesse às rogativas e, em torno
dela, magotes de Espíritos conturbados a se rojarem no solo, taciturnos, entre consolados
e estarrecidos.
Registrando-nos
o assombro, Félix explicou que conservava naquela obra de arte a lembrança de
magnânima servidora do Cristo, desconhecida entre os homens, consagrada no
mundo espiritual ao socorro de corações mergulhados nas trevas. Visitava as
furnas de expiações pungentes, às vezes sozinha, e, de outras, acompanhada por
equipes de colaboradores, amparando, reconfortando... Adotava criminosos
desencarnados por filhos da alma, infundia-lhes o ideal da regeneração, levantando-os
e instruindo-os. De quando em quando, ele, Félix, ia vê-la no asilo maternal
que, ainda hoje, a abnegada educadora sustenta nas regiões sombrias por almenara
de amor. Prosseguiu relatando que nesse abrigo permanecem, freqüentemente, mais
de mil hóspedes, sempre substituidos, de vez que a benfeitora efetua o
encaminhamento constante dos recolhidos a escolas beneméritas, com vistas à
reencarnação na Terra ou a estágios de retificação em outras paragens. E
informou dever a ela, que nomeava por Irmã Damiana, o primeiro contacto com a
verdade, oitenta anos antes. Guardava aquele quadro, confeccionado a pedido
dele próprio, para não se esquecer, nas horas de supremas decisões, nas
responsabilidades e encargos de que fora investido, da lama em que um dia se
afundara e de que se vira arrebatado por aquela missionária engrandecida no
Espaço, a serviço dos infelizes.
Neves,
porém, imprimiu novo rumo à palestra, colocando em relevo a satisfação de que
nos sentíamos possuídos com a revista proveitosa nos órgãos de ensino, que
acabávamos de realizar, e os apontamentos se voltaram para as questões do sexo,
que, no «Almas Irmãs», assumiam aspectos inusitados.
O
Irmão Régis explicou que também se surpreendera, a princípio, com o respeito
profundo ali dedicado aos estudos do sexo, em vista da desconsideração com que
autoridades políticas, religiosas e sociais terrestre. habitualmente o menoscabam,
ressalvadas as exceções. E sublinhou, com humor, que nós, os homens, somos
contraditórios quando reencarnados, porqüanto estamos sempre ávidos de
consertar uma tomada em desajuste e queremos aventávamos, historiou, em
síntese, que na Espiritualidade Superior o sexo não é considerado unicamente por
baliza morfológica do corpo de carne, distinguindo macho e fêmea, definição unilateral
que, na Terra, ainda se faz seguir de atitudes e exigências tirânicas, herdadas
do comportamento animal. Entre os Espíritos desencarnados, a partir daqueles de
evolução mediana, o sexo é categorizado por atributo divino na individualidade humana,
qual ocorre com a inteligência, com o sentimento, com o raciocínio e com
faculdades outras, até agora menos aplicadas nas técnicas da experiência
humana. Quanto mais se eleva a criatura, mais se capacita de que o uso do sexo
demanda discernimento pelas responsabilidades que acarreta.
Qualquer
ligação sexual, instalada no campo emotivo, engendra sistemas de compensação
vibratória, e o parceiro que lesa o outro, até o ponto em que suscitou os
desastres morais conseqüentes, passa a responder por dívida justa. Todo desmando
sexual danificando consciências reclama corrigenda, tanto quanto qualquer abuso
do raciocínio. Homem que abandone a companheira sem razão ou mulher que assim
proceda, gerando desregramentos passionais na vítima, cria certo ônus cármico
no próprio caminho, pois ninguém causa prejuízo a outrem sem embaraçar a si
mesmo. Vaticinou que a Terra, a pouco e pouco, renovará princípios e conceitos,
diretriz e legislação, em matéria de sexo, sob a inspiração da Ciência, que
situará o problema das relações sexuais no lugar que lhe é próprio.
Empenhou-se
a repetir que na Crosta Planetária os temas sexuais são levados em conta, na
base dos sinais físicos que diferenciam o homem da mulher e vice-versa; no
entanto, ponderou que isso não define a realidade integral, porquanto, regendo
esses marcos, permanece um Espírito imortal, com idade às vezes multimilenária,
encerrando consigo a soma de experiências complexas, o que obriga a própria
Ciência terrena a proclamar, presentemente, que masculinidade e feminilidade
totais são inexistentes na personalidade humana, do ponto de vista psicológico.
Homens e mulheres, em espírito, apresentam certa percentagem mais ou menos
elevada de característicos virís e feminis em cada indivíduo, o que não assegura
possibilidades de comportamento íntimo normal para todos, segundo a
conceituação de normalidade que a maioria dos homens estabeleceu para o meio
social.
Tendo
Neves formulado consulta sobre os homossexuais, Félix demonstrou que inúmeros
Espíritos reencarnam em condições inversivas, seja no domínio de lides expiatórias
ou em obediência a tarefas específicas, que exigem duras disciplinas por parte
daqueles que as solicitam ou que as aceitam. Referiu ainda que homens e mulheres
podem nascer homossexuais ou intersexos, como são suscetíveis de retomar o
veículo físico na condição de mutilados ou inibidos em certos campos de manifestação,
aditando que a alma reencarna, nessa ou naquela circunstância, para melhorar e
aperfeiçoar-se e nunca sob a destinação do mal, o que nos constrange a reconhecer
que os delitos, sejam quais sejam, em quaisquer posições, correm por nossa
conta. À vista disso, destacou que nos foros da Justiça Divina, em todos os
distritos da Espiritualidade Superior, as personalidades humanas tachadas por anormais
são consideradas tão carecentes de proteção quanto as outras que desfrutam a
existência garantida pelas regalias da normalidade, segundo a opinião dos homens,
observando-se que as faltas cometidas pelas pessoas de psiquismo julgado
anormal são examinadas no mesmo critério aplicado às culpas de pessoas tidas
por normais, notando-se, ainda, que, em muitos casos, os desatinos das pessoas
supostas normais são consideravelmente agravados, por menos justificáveis
perante acomodações e primazias que usufruem, no clima estável da maioria.
E
à ligeira pergunta que arrisquei sobre preceitos e preconceitos vigentes na Terra,
no que tange ao assunto, Félix ponderou, respeitoso, que os homens não podem
efetivamente alterar, de chofre, as leis morais em que se regem, sob pena de
precipitar a Humanidade na dissolução, entendendo-se que os Espíritos ainda ignorantes
ou animalizados, por enquanto em maioria no seio de todas as nações terrestres,
estão invariavelmente decididos a usurpar liberalidades prematuras para converter
os valores sublimes do amor em criminalidade e devassidão.
Acrescentou,
no entanto, que no mundo porvindouro os irmãos reencarnados, tanto em condições
normais quanto em condições julgadas anormais, serão tratados em pé de igualdade,
no mesmo nível de dignidade humana, reparando-se as injustiças assacadas, há
séculos, contra aqueles que renascem sofrendo particularidades anômalas,
porqüanto a perseguição e a crueldade com que são batidos pela sociedade humana
lhes impedem ou dificultam a execução dos encargos que trazem à existência
física, quando não fazem deles criaturas hipócritas, com necessidade de mentir
incessantemente para viver, sob o Sol que a Bondade Divina acendeu em benefício
de todos. A conversação era fascinante, mas um companheiro de serviço veio
avisar que Dona Beatriz se achava pronta a receber-nos.
Demandamos
o interior. O chefe apresentou-nos duas senhoras que lhe partilhavam o refúgio
doméstico, Sara e Priscila, que lhe haviam sido irmãs consangüíneas na Terra.
Ambas de cativante simpatia na lhaneza de trato. Notificou Félix que, a
princípio, ali morava junto de colaboradores afeiçoados; no entanto, nos anos
últimos, conseguira que as duas manas, servindo em outros setores, se
transferissem para o «Almas Irmãs», a fim de trabalharem juntos, preparando o
futuro. Remanesciam os três de família cujos membros, em quase todo o conjunto,
se achavam novamente domiciliados na esfera física, e, aparteando, Sara chasqueou,
afiançando que não se demoraria a tomar o mesmo rumo.
Parando,
de trecho a trecho, para conhecer minudências do extenso átrio que atravessávamos,
fiquei sabendo que o instituto sustenta zonas residenciais, além dos edifícios
reservados à administração, ao ensino, à subsistência e à hospitalização transitória.
Aí se acomodam famílias inteiras, casais, Espíritos em conjunções afetivas e
repúblicas de estudiosos que se visitam ou recebem amigos de outras organizações
e de outras plagas, efetuando excursões edificantes e recreativas ou atendendo
a empresas artísticas e assistenciais, de permeio com as obrigações de rotina.
Satisfazendo-nos
as inquirições, Félix informou que Marita se encontrava naquele mesmo sítio,
internada num parque destinado a convalescentes; todavia, não nos encorajou o
impulso de revê-la, assim de imediato, à face de achar-se bastante
traumatizada, conquanto tranqüila. A desencarnação precoce acarretara-lhe
prejuízos. Ele, porém, rogara de orientadores amigos as possíveis concessões, a
fim de que fosse reposta, com urgência, no ambiente familiar do Rio, de modo a
que se não perdessem medidas em andamento para o resgate do pretérito. O
decesso prematuro representara fundo golpe no programa estabelecido ali, no
«Almas Irmãs», anos antes; contudo, nutria a esperança de reparar as brechas,
restituindo-a ao convívio dos entes caros, pela reencarnação de emergência. Dessa
forma, aproveitaria oportunidade e clima de serviço, à maneira de operário que
muda de máquina sem se afastar da oficina. O processo alusivo ao retorno
tramitava, desde a véspera, nos órgãos competentes, pelo que não julgava oportuno
interessá-la em assuntos suscetíveis de lhe modificarem a mente, voltada para o
reduto doméstico.
Neves
abordou a tese referente ao dia determinado para a desencarnação,
defendida
por alguns religiosos na Terra, ao que Félix enunciou:
—
Sim, não nos é lícito desacreditar os ensinamentos religiosos. Há planos prefixados
e ocasiões previstas com relativa exatidão para o deperecimento do
veículo
físico; no entanto, os interessados costumam alterá-los, seja melhorando ou piorando
a própria situação. Tempo é comparável a crédito que um estabelecimento bancário
empresta ou retira, segundo as atitudes e diretrizes do devedor. Não podemos,
assim, olvidar que a consciência é livre para pensar e agir, tanto nas áreas
físicas quanto nas espirituais, mesmo quando jungida às conseqüências do passado
culposo...
E,
sorrindo, rematou:
—
Qualquer dia é dia de criar destino ou reconstituir destino, de vez que todos
somos
consciências responsáveis.
Nesse
ínterim, fomos defrontados pelo aposento da senhora recém desencarnada, a quem
Sara e Priscila dispensavam cuidados especiais.
Beatriz
remoçara.
No
semblante, a circunspeção que lhe conhecíamos, mas nos olhos o clarão juvenil
da criatura que retoma aspirações de há muito esmaecidas. Neves aproximou-me.
Conversamos. Declarava-se encantada, agradecida aos hospedeiros. Falava como se
estivesse num lar de pessoas desconhecidas, sem suspeitar das atenções que recebera
de Félix, antes de liberar-se do corpo enfermiço.
A
palestra deslizou sobre os patins da ternura recíproca. Ela reconhecida e os anfitriões
satisfeitos. Assuntos numerosos vieram à baila. Notava-se que Félix se
empenhava em distraí-la, desentranhando-lhe o pensamento fincado no antigo lar.
Todos nos esforçávamos por induzi-la a esquecimento construtivo; entretanto,
mesmo assim, adivinhando-nos na fase terminal do reencontro, aquele coração
generoso de mulher não deixou de se patentear, lembrando a Neves que, até
aquele momento, ainda não obtivera qualquer notícia da mãezinha que os
precedera no mundo espiritual, tantos anos antes, como também rogava para que
os circunstantes a favorecessem com uma visita, na primeira oportunidade, à
casa que ficara na Terra.
Discípula
aplicada do ambiente renovador em que se reconhecia, solicitou com os olhos
marejados de pranto que lhe desculpássemos o apego à retaguarda, mas isso acontecia,
acentuou com humildade e grandeza de alma, porque acreditava ter sido no mundo
imensamente feliz, entre as mulheres mais felizes, ao lado de um esposo que, na
apreciação dela, era dos companheiros mais leais do mundo e pai do melhor dos
filhos...
A
noite avançara. Neves confortou-a, propiciando-lhe esperanças, e enquanto nos
despedíamos, demandando o repouso, refleti na transformação do amigo que
aprendera a colocar o amor por cima de mágoas recalcadas, a endereçar afetuoso
sorriso para a filha confiante e adiando a verdade para momento oportuno.
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ESTUDO DO DIA 10/06/2013
CAPÍTULO 7
Marita assimilou-nos o apelo, de imediato. Incapaz de explicar a si mesma a razão pela qual se via instintivamente constrangida a rememorar o pretérito, situou o impulso mental no ponto em que obtinha o fio inicial das suas recordações.
Os quadros da meninice se lhe estamparam na aura, movimentados como num filme.
Vimo-la pequenina, hesitante, nos passos primeiros.
E, enquanto desfilavam os painéis ingênuos do que lhe havia acontecido, logo após o soerguimento do berço, ela alinhavava elucidações inarticuladas, respondendo-nos às perguntas.
Sim — relembrava, supondo falar consigo —, não era filha dos Nogueiras. Dona Márcia, a esposa de Cláudio, adotara-a. Nascera de jovem suicida. Aracélia, a mãezinha que não conhecera, fora tomada a serviço do casal, por ocasião do matrimônio daqueles que o destino lhe impusera na condição de pais. Quando se entendera por gente grande, a genitora de Marina lhe dera a saber, através de informações pessoais, a breve história da mulher simples e pobre que a trouxera ao mundo.
Recém-chegada do interior, procurando emprego humilde, Aracélia acolhera-se-lhe à moradia, encaminhada por senhora de suas relações. Era bonita, espontânea. Brincava, gostava de festas. Findos os compromissos caseiros, divertia-se. Pela ternura expansiva, granjeara amizades, passeava, dançava. Alegre e comunicativa, mas operosa e correta. As vezes, regressava, tarde da noite, ao aposento que a família lhe destinara; de manhãzinha, porém, estava no posto.
Nunca se queixava. Invariavelmente prestimosa, a desvelar-se do tanque à cozinha.
A vista disso, embora os patrões não lhe estimassem as companhias pouco recomendáveis, não se sentiam com direito a lançar-lhe reproches. Dona Márcia era habitualmente precisa nas referências. Lembrava-se dela, enternecida. Por ocasião do nascimento de Marina, a filha única, fizeram-se mais amigas, mais íntimas.
Aracélia desdobrara-se, junto dela, em carinho e dedicação. Contudo, justamente nessa época, verificara-se a grande mudança. A doméstica devotada engravidara-se, com muito padecimento físico. Por mais se esforçassem os donos da casa, instando a que se manifestasse quanto ao responsável pela situação, apenas chorava, abolindo qualquer possibilidade de se lhe tentar casamento digno. Sabia-se que, frequentando bailes a rodo, decerto se precipitara em aventuras diversas.
Compadecidos, os patrões deram à jovem mãe solteira a mais ampla assistência, inclusive internando-a em estabelecimento adequado, para que a criança nascesse sob o amparo possível.
Nesse tópico das amargosas reminiscências, a menina estacou, mentalmente, qual se estivesse cansada de pensar no mesmo assunto. Fora assim que ela, Marita, chegara ao mundo.
Marejaram-se-lhe os olhos de lágrimas, estabelecendo confronto entre as provações da mãezinha e as dela própria; no entanto, para não distrair a pesquisa em curso, sugeri-lhe continuasse.
Dona Márcia contara-lhe — prosseguiu no solilóquio — que, retornando a casa, mostrara-se Aracélia irremediavelmente abatida. Lágrimas incessantes, irritação, melancolia. Não valeram advertências, nem cuidados médicos. Na noite em que sorveu grande dose de formicida, conversara animadamente com a patroa, fornecendo a impressão de que se recuperava. Entretanto, pela manhã, foi achada morta, com uma das mãos agarrada ao seu berço, como se, na última hora, não lhe quisesse dizer adeus.
Fundamente comovida, a jovem procurou, em vão, revisar o começo, interessada em relatar-nos quanto conhecia de si mesma. Certificava-se tão somente de que despertara para a vida no colo de Dona Márcia, que considerara, a principio, sua mãe verdadeira, que se ligava a Marina como se lhe fosse irmã no sangue, apegando-se a ela em todos os brincos da infância. Juntas frequentaram a escola, juntas comungaram a meninice. Partilhavam excursões e entretenimentos, alegrias e jogos. Manuseavam os mesmos livros, vestiam cores iguais.
Processava-se a análise, normalmente, mas, talvez porque o tempo avançasse, o irmão Félix se despediu, alegando obrigações urgentes. Serviços na instituição pela qual se responsabilizava não lhe permitiam delongar a visita.
ESTUDO DO DIA 03/06/2013
Final do capítulo 6 e início do capítulo 7.
Capítulo 7
Entramos em aposento contíguo,
onde encontramos jovem franzina, em dorida atitude. Sentada num dos leitos que
se estiravam no quarto gracioso e limpo, refletia, torturada, permitindo-nos entrever-lhe
o drama oculto.
O irmão Félix apresentou-a.
Tratava-se de Marita, que os
donos da casa haviam perfilhado ao nascer, vinte anos antes.
Bastou uma vista de olhos para
que me condoesse ao contempla-la.
Rosa humana, embora exalasse a
fragrância da juventude, aquela moça, quase menina, de mãos enclavinhadas sob o
queixo, matutando, parecia carregar o peso estafante de tribulações
cronicificadas e dolorosas. Figurava-se-lhe a cabeleira ondeada lindo toucado
de veludo castanho sobre a cabeça. O rosto esculpido em linhas raras, os olhos
escuros contrastando com a brancura da tez, as mãos pequenas e as unhas róseas
complementavam belo manequim de carne, apresentando por dentro uma criança
assustada e ferida.
Tristeza maquilada. Aflição no
disfarce de flor. Obedecendo a instruções de Félix, abordei-a, enternecido,
rogando-lhe, mentalmente, algo esclarecesse, em torno de si própria.
Desde o contacto com Nemésio, o
benfeitor ensaiava-me, provavelmente sem querer, em novo gênero de anamnese:
consultar o enfermo espiritual em pensamento, evidenciando a terna compreensão
que um pai deve aos filhos, a fim de pesquisar conclusões para o trabalho
assistencial.
Compelido a operar
individualmente, recompus emoções.
Recobrei os sentimentos paternais
que me haviam animado entre os homens e cravei o olhar indagador naquela
criaturinha cismarenta, imaginando-a por filha de minha alma.
Solicitei-lhe, sem palavras,
confiasse em nós, desoprimindo-se.
Relacionasse, por gentileza, as
suas impressões mais recuadas no tempo.
Desenovelasse o passado. Reconstituísse
na lembrança tudo o que soubesse de si,
nada escondesse. Propúnhamo-nos
auxiliá-la.
Não conseguiríamos, porém, agir
ao acaso. Era imprescindível que ela se nos revelasse, arrancando à câmara da
memória as cenas arquivadas desde a infância, expondo-as na tela mental para
que as analisássemos, imparcialmente, de maneira a conduzir as atividades
socorristas que intentaríamos desenvolver.
Capítulo 6
De volta ao
aposento da enferma, certificamo-nos de que Nemésio e Marina haviam saído. A camareira da casa velava. Neves,
desenxabido, absteve-se de qualquer
comentário. Retraíra-se no claro propósito de sopitar impulsos menos
construtivos.
Recompondo-se, momentos
antes, rogara do irmão Félix lhe desculpasse o ataque de cólera
em que extravasara rebeldia e desespero.
Descera à
inconveniência, acusava-se, humilde. Fora descaridoso, insensato, penitenciava-se
com tristeza.
O irmão Félix,
com bastante autoridade, se quisesse, poderia demiti-lo do piedoso
mister que invocara, com o objetivo de proteger a filha; entretanto, pedia
tolerância. O coração paternal, no instante crítico, não se vira preparado, de
modo a escalar o nível do desprendimento preciso, declarava com amargura e
desapontamento.
Félix, porém,
abraçara-o com intimidade e, sorridente, ponderou que a edificação espiritual,
em muitas circunstâncias, inclui explosões do sentimento, com trovões de
revolta e aguaceiros de pranto, que acabam descongestionando as vias da emoção.
Que Neves
esquecesse e recomeçasse. Para isso, contava com os talentos da
oportunidade, do
tempo. Obviamente, por isso, o sogro de Nemésio ali se achava agora, diante de
nós, transformado e solícito.
Por indicação do
paciente amigo que nos orientava, formulou uma prece, enquanto
ministrávamos socorro magnético à doente. Beatriz gemia; no entanto, Félix
esmerou-se para que se aliviasse e dormisse, providenciando, ainda, para que não
se retirasse do corpo, sob a hipnose habitual do sono. Não lhe convinha, por enquanto,
esclareceu ele, afastar-se do veículo fatigado.
Em virtude dos
órgãos profundamente enfraquecidos, desfrutaria penetrante lucidez espiritual e
não seria prudente arremessa-la, de chofre, a impressões demasiado ativas da
esfera diferente para a qual se transferiria, muito em breve.
Aconselhável
seria a mudança progressiva. Graduação de luz, intensificando-se, a pouco e
pouco.
Largamos a filha
de Neves em repouso nutriente e restaurador, e demandamos a rua.
Acompanhando
Félix, cujo semblante passou a denotar funda preocupação,
alcançamos
espaçoso apartamento do Flamengo, onde conheceríamos, de perto, os familiares
de Marina.
A noite
avançava.
Transpassando
estreito corredor, pisamos o recinto doméstico, surpreendendo, no limiar, dois
homens desencarnados, a debaterem, com descuidada chocarrice, escabrosos temas
de vampirismo.
Vale assinalar
que, não obstante pudéssemos fiscalizar-lhes os movimentos e ouvir-lhes a
loquacidade fescenina, nenhum dos dois lograva registrarmos a presença.
Prometiam arruaças.
Argumentavam,
desabridos.
Malandros acalentados,
mas perigosos, conquanto invisíveis para aqueles junto dos quais se erguiam por
ameaça insuspeitada.
Por semelhantes
companhias, fácil apreciar os riscos a que se expunham os
moradores
daquele ninho de cimento armado, a embutir-se na construção enorme, sem
qualquer defesa de espírito.
Entramos. Na
sala principal, um cavalheiro de traços finos, em cuja maneira de escarrapachar-se
se adivinhava, para logo, o dono da casa, lia um jornal
vespertino com
atenção.
Os atavios do
ambiente, apesar de modestos, denunciavam apurado gosto feminino. O
mobiliário antigo de linhas quase rudes suavizava-se ao efeito de ligeiros
adornos.
Tufos de cravos
vermelhos, a se derramarem de vasos cristalinos,
Harmonizavam-se com
as rosas da mesma cor, habilmente desenhadas nas duas telas que pendiam das
paredes, revestidas de amarelo dourado. Mas, destoante e agressiva, uma esguia
garrafa, contendo uísque, empinava o gargalo sobre o crivo lirial que
completava a elegância da mesa nobre, deitando emanações alcoólicas que se casavam
ao hálito do amigo derramado no divã.
Félix encarou-o,
manifestando a expressão de quem se atormentava, piedosamente, ao vê-lo, e no-lo
indicou:
– Temos aqui o
irmão Cláudio Nogueira, pai de Marina e tronco do lar.
Fisguei-o, de
relance.
Figurou-se-me o
hospedeiro involuntário um desses homens maduros que se demoram na quadra dos
quarenta e cinco janeiros, esgrimindo bravura contra os desbarates do tempo.
Rosto primorosamente tratado, em que as linhas firmes repeliam a notícia vaga
das rugas, cabelos penteados com distinção, unhas polidas, pijama impecável.
Os grandes olhos
escuros e móveis pareciam imanizados às letras, esquisando motivos para trazer
um sorriso irônico aos lábios finos. Entre os dedos da mão que descansava à
beira do sofá, o cigarro fumegante, quase rente ao tripé não, sobre o qual um
cinzeiro repleto era silenciosa advertência contra o abuso da nicotina.
Detínhamo-nos, curiosos,
na inspeção, quando sobreveio o inopinado.
Diante de nós,
ambos os desencarnados infelizes, que surpreendêramos à entrada,
surgiram de repente, abordaram Cláudio e agiram sem cerimônia.
Um deles tateou-lhe
um dos ombros e gritou, insolente:
– Beber, meu
caro, quero beber!
A voz
escarnecedora agredia-nos a sensibilidade auditiva.
Cláudio, porém,
não lhe pescava o mínimo som. Mantinha-se atento à leitura. Inalterável.
Contudo, se não possuía tímpanos físicos para qualificar a petição, trazia na
cabeça a caixa acústica da mente sintonizada com o apelante.
O assessor
inconveniente repetiu a solicitação, algumas vezes, na atitude do
hipnotizador que
insufla o próprio desejo, reasseverando uma ordem.
O resultado não
se fez demorar. Vimos o paciente desviar-se do artigo político em que se
entranhava. Ele próprio não explicaria o súbito desinteresse de que se notava
acometido pelo editorial que lhe apresara a atenção.
Beber! Beber!...
Cláudio abrigou
a sugestão, convicto de que se inclinava para um trago de uísque
exclusivamente por si.
O pensamento se
lhe transmudou, rápido, como a usina cuja corrente se desloca de uma
direção para outra, por efeito da nova tomada de força.
Beber, beber!...
E a sede de aguardente se lhe articulou na idéia, ganhando
forma. A mucosa
pituitária se lhe aguçou, como que mais fortemente impregnada do cheiro acre
que vagueava no ar.
O assistente
malicioso oçou-lhe brandamente os gorgomilos. O pai de Marina sentiu-se apoquentado.
Indefinível secura constringia-lhe o laringe. Ansiava tranqüilizar-se.
O amigo sagaz
percebeu-lhe a adesão tácita e colou-se a ele. De começo, a
carícia leve;
depois da carícia agasalhada, o abraço envolvente; e depois do abraço de
profundidade, a associação recíproca.
Integraram-se ambos
em exótico sucesso de enxertia fluídica.
Em várias
ocasiões, estudara a passagem do Espírito exonerado do envoltório carnal pela
matéria espessa. Eu mesmo, quando me afazia, de novo, ao clima da
Espiritualidade, após a desencarnação última, analisava impressões ao transpor, maquinalmente, obstáculos e
barreiras terrestres, recolhendo, nos
exercícios
feitos, a sensação de quem rompe nuvens de gases condensados.
Ali, no entanto,
produzia-se algo semelhante ao encaixe perfeito.
Cláudio homem absorvia
o desencarnado, à guisa de sapato que se ajusta ao
pé. Fundiram-se os
dois, como se morassem eventualmente num só corpo. Altura idêntica. Volume
igual.
Movimentos
sincrônicos. Identificação positiva.
Levantaram-se a
um tempo e giraram integralmente incorporados um ao
outro, na área
estreita, arrebatando o delgado frasco.
Não conseguiria
especificar, de minha parte, a quem atribuir o impulso inicial de semelhante
gesto, se a Cláudio que admitia a instigação ou se ao obsessor
que a propunha.
A talagada rolou
através da garganta, que se exprimia por dualidade singular. Ambos
os dipsômanos estalaram a língua de prazer, em ação simultânea.
Desmanchou-se a
parelha e Cláudio, desembaraçado, se dispunha a sentar, quando o outro
colega, que se mantinha a distância, investiu sobre ele e protestou:
“eu também, eu
também quero!”
Reavivou-se-lhe no
ânimo a sugestão que esmorecia.
Absolutamente
passivo diante da incitação que o assaltava, reconstituiu, mecanicamente, a
impressão de insaciedade.
Bastou isso e o
vampiro, sorridente, apossou-se dele, repetindo-se o fenômeno da
conjugação completa.
Encarnado e
desencarnado a se justaporem. Duas peças conscientes, reunidas em
sistema irrepreensível de compensação mútua.
Abeirei-me de
Cláudio para avaliar, com imparcialidade, até onde sofreria ele,
mentalmente, aquele processo de fusão. Para logo convenci-me de que continuava
livre, no íntimo. Não experimentava qualquer espécie de tortura, a fim de
render-se.
Hospedava o
outro, simplesmente, aceitava-lhe a direção, entregava-se por deliberação
própria.
Nenhuma simbiose
em que se destacasse por vítima. Associação implícita, mistura natural.
Efetuava-se a
ocorrência na base da percussão. Apelo e resposta. Cordas afinadas no
mesmo tom. O desencarnado alvitrava, o encarnado aplaudia. Num deles, o pedido;
no outro, a concessão.
Condescendendo
em ilaquear os próprios sentidos, Cláudio acreditou-se insatisfeito e
retrocedeu, sorvendo mais um gole. Não me furtei à conta curiosa.
Dois goles para
três.
Novamente
desimpedido, o dono da casa estirou-se no divã e retomou o jornal.
Os amigos
desencarnados tornaram ao corredor de acesso, chasqueando, sarcásticos, e
Neves, respeitoso, consultou sobre responsabilidade.
Como situar o
problema? Se víramos Cláudio aparentemente reduzido à
condição de um
fantoche, como proceder na aplicação da justiça? Se ao invés de bebedice,
estivéssemos diante de um caso criminal? Se a garrafa de uísque fosse arma
determinada, para insultar a vida de alguém, como decidir? A culpa seria de Cláudio
que se submetia ou dos obsessores que o comandavam?
O irmão Félix
aclarou, tranqüilo:
– Ora, Neves,
você precisa compreender que nos achamos à frente de
pessoas bastante
livres para decidir e suficientemente lúcidas para raciocinar.
No corpo físico
ou agindo fora do corpo físico, o Espírito é senhor da constituição de seus
atributos. Responsabilidade não é título variável. Tanto vale numa esfera, quanto
em outras. Cláudio
e os companheiros, na cena que acompanhamos, são três consciências na mesma
faixa de escolha e manifestações conseqüentes. Todos somos livres para sugerir
ou assimilar isso ou aquilo. Se você fosse instado a compartilhar um roubo,
decerto recusaria. E, na hipótese de abraçar a calamidade, em são juízo, não
conseguiria desculpar-se. Interrompeu-se o mentor, volvendo a refletir após
momento rápido:
– Hipnose é tema
complexo, reclamando exames e reexames de todos os
ingredientes
morais que lhe digam respeito. Alienação da vontade tem limites.
Chamamentos
campeiam em todos os caminhos. Experiências são lições e todos somos
aprendizes. Aproveitar a convivência de um mestre ou seguir um malfeitor é deliberação
nossa, cujos resultados colheremos.
Verificando que
o orientador se dava pressa em ultimar os esclarecimentos
sem mostrar o
mínimo propósito de afastar as entidades vadias que pesavam no ambiente, Neves
voltou à carga, no intuito louvável do aluno que aspira a
complementar a
lição.
Pediu vênia para
repisar o assunto na hora.
Recordou que,
sob o teto do genro, o irmão Félix se esmerava na defesa
contra aquela
casta de gente. Amaro, o enfermeiro prestimoso, fora situado junto de Beatriz
principalmente para correr com intrometidos desencarnados. O aposento da filha
tornara-se, por isso, um refúgio. Ali, no entanto...
E perguntava
pelo motivo da direção diversa.
Félix expressou
no olhar a surpresa do professor que não espera apontamento assim argucioso por
parte do discípulo e explicou que a situação era diferente.
A esposa de
Nemésio mantinha o hábito da oração. Imunizava-se espiritualmente por si.
Repelia, sem esforço, quaisquer formas de pensamentos
sentido
aviltante que lhe fossem arremessadas.
Além disso,
estava enferma, em vésperas da desencarnação. Deixa-la
à mercê de
criaturas insanas seria crueldade.
Garantias
concedidas a ela erguiam-se justas.
– Mas... e
Cláudio? – insistiu Neves. – Não merecerá, porventura, fraterna
demonstração de
caridade, a fim de livrar-se de tão temíveis obsessores?
Félix sorriu
francamente bem humorado e explicou:
– “Temíveis
obsessores” é a definição que você dá. – E avançou: – Cláudio
desfruta
excelente saúde física. Cérebro claro, raciocínio seguro. É inteligente,
maduro,
experimentado. Não carrega inibições corpóreas que o recomendem a
cuidados
especiais. Sabe o que quer. Possui materialmente o que deseja.
Permanece no
tipo de vida que procura. É natural que esteja respirando a influência das companhias
que julgue aceitáveis. Retém liberdade ampla e valiosos recursos de instrução e
discernimento para juntar-se aos missionários do bem que operam entre os
homens, assegurando edificação e felicidade a si mesmo. Se elege para comensais
da própria casa os companheiros que acabamos de ver, é assunto dele. Enquanto
nos arrastávamos, tolhidos pela carne, não nos ocorreria a idéia de expulsar da
residência alheia as pessoas que não se harmonizassem conosco. Agora, vendo o
mundo e as coisas do mundo, de mais alto, não será cabível modificar semelhante
modo de proceder.
O tema
desdobrava-se, assumindo aspectos novos.
Curioso,
interferi:
– Mas, irmão
Félix, é importante convir que Cláudio, liberto, poderia ser
mais digno...
– Isso é
perfeitamente lógico – confirmou. Ninguém nega.
– E por que não
dissipar de vez os laços que o prendem aos malandros que
o exploram?
O alto
raciocínio da Espiritualidade superior jorrou, pronto:
– Cláudio
certamente não lhes empresta o conceito de vagabundos. Para
ele, são sócios
estimáveis, amigos caros. Por outro lado, ainda não investigamos a causa da
ligação entre eles para cunhar opiniões extremadas.
As
circunstâncias podem ser saudáveis ou enfermiças como as pessoas e, para
tratarmos um doente com segurança, há que analisar as raízes do mal e confirmar
os sintomas, aplicar medicação e estudar efeitos. Aqui, vemos um problema pela
rama. Quando terá nascido a comunhão do trio? Os vínculos serão de agora ou de
existências passadas?
Nada legitimaria
um ato de violência da nossa parte, com o intuito de separa-los, a titulo de
socorro. Isso seria o mesmo que apartar os pais generosos dos filhos ingratos
ou os cônjuges nobres dos esposos ou das esposas de condição inferior, sob o
pretexto de assegurar limpeza e bondade nos processos da evolução. A responsabilidade
tem o tamanho do conhecimento.
Não dispomos de
meios precisos para impedir que um amigo se onere em dívidas escabrosas ou se
despenque em desatinos deploráveis, conquanto nos seja lícito dispensar-lhe o
auxílio possível, a fim de que se acautele contra o perigo no tempo viável,
sendo de notar-se que as autoridades superiores da espiritualidade chegam a
suscitar medidas especiais que impõem aflições e dores de importância aparente
a determinadas pessoas, com o objetivo de livrá-las da queda em desastres
morais iminentes, quando mereçam esse
amparo de
exceção.
Na Terra, a
exata justiça apenas cerceia as manifestações de
alguém, quando
esse alguém compromete o equilíbrio e a segurança dos outros, na área de
responsabilidade que a vida lhe demarca, deixando a cada um a regalia de agir
como melhor lhe pareça. Adotaremos princípios que valham menos, perante as normas
que afiançam a harmonia entre os homens?
Rematando as
elucidações lapidares que entretecia, o irmão Félix revestira-se
de um halo
brilhante.
Enlevados, não
encontrávamos em nós senão silêncio para significar-lhe
admiração ante a
sabedoria e a simplicidade.
O instrutor
fitava Cláudio com simpatia, dando a entender que se dispunha
a abraça-lo paternalmente,
e, receando talvez que a oportunidade escapasse, Neves, humilde e respeitoso,
pediu se lhe relevasse a insistência; entretanto, solicitava fosse aclarado,
ainda, um ponto dos esclarecimentos em vista.
Diante do mentor
paciente, perguntou pelos promotores de guerra, entre os
homens.
Declarara Félix que a justiça tacitamente cerceia as ações dos que ameaçam a
estabilidade coletiva. Como entender a existência de governantes transitórios, erigindo-se
na Terra em verdugos de nações?
Félix sintetizou,
reempregando algumas das palavras de que se utilizara:
– Dissemos
“cercear” no sentido de “corrigir”, “restringir”. Assinalamos
igualmente que
toda criatura vive na área de responsabilidade que a lei lhe delimita. Compreendendo-se que a responsabilidade de
alguém se enquadra ao tamanho do conhecimento superior que esse alguém já
adquiriu, é fácil admitir que os compromissos da consciência assumem as
dimensões da autoridade que lhe foi atribuída.
Uma pessoa com grandes cabedais de autoridade
pode elevar extensas
comunidades às
culminâncias do progresso e do aprimoramento ou afunda-las
em estagnação e
decadência. Isso na medida exata das atitudes que tome para o bem ou para o
mal. Naturalmente, governantes e administradores, em qualquer tempo, respondem
pelo que fazem. Cada qual dá conta dos recursos que lhe foram confiados e da
região de influência que recebeu, passando a colher, de modo automático, os
bens ou os males que haja semeado.
Víamos, porém,
que Félix não desejava estender-se em mais amplas considerações filosóficas.
Assentando no
rosto a expressão de quem nos pedia transferir para depois
qualquer nova
interrogação, acercou-se de Cláudio, a envolve-lo nas suaves
irradiações do
olhar brando e percuciente.
Estabeleceu-se ligeira
e doce expectativa.
O benfeitor
acusava-se emocionado. Parecia agora mentalmente distanciado
no tempo.
Acariciou a cabeleira daquele homem, com quem Neves e eu, no fundo, não nos
afináramos assim tanto, semelhando-se médico piedoso, encorajando um doente
menos simpático.
Aquele momento
de comoção, entretanto, foi rápido, quase imperceptível,
porque o irmão
Félix retomou-nos a intimidade e comentou, despretensioso:
– Quem afirmará
que Cláudio amanhã não será um homem renovado para o
bem, passando a
educar os companheiros que o deprimem? Por que atrair contra nós a repulsão dos
três, simplesmente porque se mostrem ignorantes e infelizes? E admitir-se-á, porventura,
que não venhamos a necessitar uns dos outros? Existem adubos que lançam emanações
extremamente desagradáveis; no entanto, asseguram a fertilidade do solo,
auxiliando a planta que, a seu turno, se dispõe a auxiliar-nos.
O benfeitor
esboçou o gesto de quem encerrava a conversação e lembrou-nos,
gentil, o
trabalho em andamento.
Capítulo 5
Imperfeitamente refeitos do
assombro que semelhante atitude nos causava, passamos a colaborar com o irmão Félix, na
aplicação de recursos, a beneficio do amigo que, embora nos desconhecesse a
presença, se mantinha agora em aturada reflexão.
Ao contacto das mãos do benfeitor
que mobilizava, proficiente, a energia magnética, Nemésio expunha as
deficiências do campo circulatório.
O coração, consideravelmente
aumentado, denotava falhas ameaçadoras com endurecimento das artérias.
O examinando, rebuçado por fora,
era enfermo grave por dentro. Entretanto, a característica mais constrangedora
que apresentava surgia na arteriosclerose cerebral, cujo desenvolvimento
conseguíamos claramente positivar, manejando diminutos aparelhos de
auscultação.
Comprovando longa experiência
médica, o irmão Félix apontou-nos determinada região, em que notei a circulação
do sangue reduzida, e informou:
— Nosso amigo permanece sob o
perigo de coágulos bloqueadores e, além
disso, é de temer-se a ruptura de
algum vaso em qualquer acidente mais importante
da hipertensão.
Como se nos percebesse a
movimentação e nos registrasse os apontamentos,o genro de Neves, na cadeira
estofada a que se recolhera, instintivamente respondia ao inquérito afetuoso a
que lhe submetíamos a memória, elucidando-nos todas as dúvidas, através de
reações mentais específicas. Acreditava-se afundado na imaginação, ignorando que se
nos revelava, por inteiro, na feição de um doente voltado para os esclarecimentos
da anamnese. Rememorou as tonturas ligeiras que vinha experimentando amiúde.
Vasculhava a lembrança, atendendo-nos às perguntas. Alinhava
acontecimentos passados, fixava pormenores. Reconstituiu, quanto possível, as fases do
desconforto a que se vira atirado, subitamente, com a perda dos sentidos que sofrera,
no escritório, dias antes. Sentira-se desamparado, de chofre. Ausente.
O pensamento esvaíra-se-lhe da
cabeça, como se expulso por martelada interior. Pavoroso delíquio que se lhe
representara infindável, quando perdurara simplesmente por segundos. Retomara a
noção de si mesmo, atarantado, abatido. Curtira apreensões, ensimesmado, por
muitos dias.
Para desafrontar-se, expusera a
ocorrência perante velho amigo, na antevéspera, já que não sabia como
destrinçar o fenômeno.
A tela rearticulada por ele, na
imaginação, salientava-se tão nítida que lográvamos contemplá-los juntos,
Nemésio e o companheiro que lhe tomara confidências, como se estivessem
filmados.
O marido de Beatriz, inconscientemente,
configurava informes precisos, acerca do desmaio experimentado, das
inquietações conseqüentes, da entrevista que provocara com o colega de
negócios e do entendimento cordial havido entre ambos.
Consignamos os avisos que o
interlocutor lhe transmitira.
Não lhe cabia adiar providências.
Devia procurar um médico, analisar as próprias condições, definir os
sintomas. Traçou advertências. Verificava-se-lhe facilmente a fadiga. No Rio,
obteria melhoras em alguma clínica de repouso. Umas férias não lhe fariam mal.
Qualquer síncope, a seu ver, equivalia a puxão de campainha, no apartamento da
vida. Sério vaticínio, enfermidade à porta. Nemésio, calado, sem perceber que
se comunicava conosco, repetia espiritualmente as alegações que formulara.
Difícil a consulta.
Responsabilidades em penca, o tempo escasso.
Acompanhava a esposa, na
travessia das horas derradeiras, em doloroso término de existência e não encontrava
meios de cuidar de si. Não discutia a oportunidade das admoestações, mas admitia-se
obrigado a transferir o tratamento para quando pudesse.
No entanto, no âmago do
pensamento, por noticiário vivo secretamente arquivado no cofre da alma,
desvelava, para nós, motivos outros que não tivera coragem de expender.
Enternecido ao toque de amor fraterno do benfeitor que o
auscultava, liberou, em silêncio, as mais fundas preocupações.
Semelhava-se a menino peralta,
quando espontâneo e obediente no clima dos pais.
Aclarou, positivo, a razão da
fuga a qualquer assunto relacionado com a provável submissão a preceitos
médicos. Receava conhecer o próprio estado orgânico. Amava, novamente,
crendo-se de regresso às primaveras do corpo físico.[
Identificava-se espiritualmente
jovem, feliz. Qualificava a afeição de Marina como sendo o reencontro da
mocidade que ficara para trás.
Alinhavando recordações e
meditações, exibia, diante de nós, a trama dos acontecimentos que lhe
sedimentavam as noções precárias da vida, possibilitando-nos retratar-lhe a
realidade psicológica.
Beatriz, a companheira em
vésperas de desencarnação, erigia-se-lhe, agora, no ânimo, em forma de relíquia
que situaria, reverentemente, em breve, no museu das lembranças mais caras.
Imperturbavelmente correta e
simples, transformara-lhe a volúpia em admiração e a chama juvenil em calor de
amizade serena. Estranho ao benefício da rotina construtiva, colocara a esposa
no lugar da genitora que a morte levara. Disputava-lhe, por instinto, o sorriso
benevolente e a bênção da aprovação. Queria-lhe a presença, como quem se
acostuma ao serviço de um traste precioso. Harmonizava-se consigo próprio, ao
chegar, suarento, em casa, descansando a cabeça fatigada em seu olhar.
Entretanto, Nemésio, de formação
materialista e de índole utilitária, conquanto generoso, desconhecia que as
almas nobres colhem no amor esponsalício da Terra o fruto da alegria sublime,
cuja polpa o tempo sazona e torna mais doce, eliminando os caprichos
transitoriamente necessários da casca.
Insistia na conservação de todos
os impulsos emotivos da juventude corpórea.
Andava em dia com todas as
teorias da libido.
Vez por outra, demandava cidades
próximas, em noitadas boêmias, asseverando, de retorno, aos
amigos que assim procedia para desenferrujar o coração. Dessas escapadas,
voltava trazendo à esposa corbelhas de alto preço que Beatriz acolhia,
enlevada. No decurso de algumas semanas, mostrava-se para ela mais compreensivo
e mais terno. Reconduzido, porém, mais dilatadamente, aos freios do hábito, não
sabia consagrar-se às construções espirituais que só a disciplina favorece e
garante. Varava, de novo, as fronteiras que os compromissos morais
estabeleciam, à maneira de animal arrombando cerca.
Em determinadas ocasiões,
acontecia fixar a esposa, invariavelmente abnegada e fiel, perguntando à
própria alma o que sucederia se ela adotasse conduta igual à dele, e
aterrava-se.
Isso nunca, pensava. Se Beatriz
pusesse, ainda que de leve, o voto feminino em outro homem, era capaz de
matá-la. Não hesitaria.
Nesses momentos, impressões
contraditórias agitavam-lhe o espírito limitado.
Não se interessava absolutamente
pela mulher, mas não toleraria concorrência à posse daquela a quem confiara o
seu nome.
Inquietava-se, imaginava coisas, mas
recompunha-se, tranqüilo, recordando a esquisita conceituação de velho amigo
que consumira a existência alcoolizado entre os despojos endinheirados de
parentes ricos, e que lhe tisnara os sonhos do lar, quando menino, a
repetir-lhe, freqüentemente: «Nemésio, mulher é chinela no pé do homem. Quando
não presta mais, é preciso arranjar outra.
Compreensível que, regando a raiz
do caráter com as águas turvas de semelhante filosofia, atingisse o genro de
Neves o marco dos sessenta anos com os sentimentos deteriorados, no tocante ao
respeito que um homem deve a si mesmo.
Por todos esses motivos, na
quadra difícil e obscura que atravessava, reaprendera os cuidados da
preservação individual.
Readquirira o gosto de vestir-se
com distinção, selecionando figurinos e alfaiates. Refinara a
sensibilidade masculina, afeiçoara-se aos programas radiofônicos de ginástica, no
que, aliás, lograra despojar-se da adiposidade oscilante. Disputava o ingresso
em agremiações festivas para atualizar a linguagem e requintar o porte.
Não lhe importavam as tochas
brancas que lhe esmaltavam de prata a cabeleira densa. Elegia nos perfumes
raros e nas gravatas coloridas motivos de leveza e elegância sempre novos.
Pagara habilmente instruções e
pareceres de improvisados professores em renovação da personalidade e
embelezara-se, vaidoso, lembrando antigo edifício sob nova decoração.
Evidentemente, não — raciocinava,
apreensivo —, não se resignaria a qualquer terapêutica que não fosse a de se
lhe acentuar disposições ao prazer. Recusaria, peremptório, toda medida
endereçada a suposto reajustamento orgânico, já que se supunha perfeitamente
idôneo para comandar as próprias sensações. Euforia, o problema. Providência
medicamentosa, apenas a que lhe arejasse o espírito, rejuvenescendo-lhe as
forças.
O irmão Félix voltou a dizer-nos:
— Nemésio demonstra enorme
esgotamento, à vista dos hábitos demolidores a que se rendeu.
A inquietação emotiva
descontrola-lhe os nervos e os falsos afrodisíacos usados solapam-lhe as
energias, sem que ele mesmo perceba.
Diante da afirmativa, o esposo de
Beatriz fixou agoniado vinco mental, entremostrando haver assimilado,
mecanicamente, o impacto do grave enunciado.
— E se piorasse? — considerou de
si para si.
A figura de Marina repontou-lhe
da alma.
Nemésio divagou, cismarento.
Concordaria, sim, em recuperar a
saúde, mas somente depois... Depois que retivesse a jovem no lar,
entregue a ele, em definitivo, pelos laços do matrimônio.
Enquanto não a recolhesse, nos
braços, sob regime de compromisso legal, não aceitaria proteção médica.
Cabia-lhe sustentar-se capaz e moço aos olhos dela.
Fugiria deliberadamente de
conselhos ou disciplinas tendentes a desviá-lo da ronda de passeios, excursões,
entretenimentos e bebedices que, na posição de homem enamorado, acreditava
dever-lhe.
O irmão Félix não contrapôs
qualquer argumentação. Ao revés, administrou-lhe recursos magnéticos em toda a
província cerebral, dispensando-lhe assistência.
Ao término da longa operação
socorrista, Neves, taciturno, não encobria o
próprio desapontamento. A
desaprovação esguichava-lhe da cabeça, plasmando pensamentos de censura, que,
não obstante respeitosa, nos alcançavam em cheio, por chuva de vibrações
negativas.
Talvez, por isso, o benfeitor
sugeriu ao dono da casa abandonar o recinto, solicitação muda que Nemésio
atendeu, de pronto, já que se munira das escoras que o amigo espiritual
espontaneamente lhe oferecia. Os três, a sós, tornamos à conversação.
Félix, sorrindo, afagou de leve
os ombros do meu companheiro e ponderou:
— Entendo, Neves, entendo você...
Encorajado pela inflexão de
carinho com que semelhantes palavras eram ditas, o sogro de Nemésio
desafogou-se:
— Quem entende menos sou eu. Não
admito tanto resguardo para um cachorro de má qualidade. Um homem igual a este,
que me desrespeita a confiança paterna!
Quem não lhe vê no espírito a
poligamia declarada? Um sessentão desavergonhado que enxovalha a presença da
esposa agonizante! Ah! Beatriz, minha pobre Beatriz, por que te uniste a um
cavalo?
Dementara-se Neves, diante de
nós. Retrocedera mentalmente ao círculo acanhado da família humana e chorava,
transtornado, sem que lhe pudéssemos cercear a emoção.
— Faço força — gemia acabrunhado
—, mas não agüento. De que me vale
trabalhar odiando? Nemésio é um
mascarado! Tenho estudado a ciência de perdoar e servir, tenho aconselhado
serviço e perdão aos outros, mas agora... Divididos por simples parede, vejo o
sofrimento e o vício debaixo do mesmo teto. De um lado, minha filha conformada,
aguardando a morte; de outro, meu genro e essa mulher que me insulta a família.
Deus do céu! que me foi reservado? Andarei auxiliando uma filha doente ou sendo
chamado à tolerância? Mas, como suportar um homem desses?
Não adiantou um aceno à
prudência, na pausa curta.
— Antigamente — tartamudeou ele,
desesperado — acreditava que o inferno, depois da morte, fosse pular em vão num
cárcere de fogo; hoje aprendo que o inferno é voltar à Terra e estar com os
parentes que já deixamos... Isso é a purgação de nossos pecados!...
Félix aproximou-se e ponderou,
segurando-lhe afetuosamente as mãos:
— Calma, Neves. Sempre surge para
todos nós o dia de provar aquilo que somos naquilo que ensinamos. Além
disso, Nemésio deve ser entendido...
— Entendido? — entaramelou-se o
interlocutor — não chegará ter visto?
E acrescentou, quase irônico:
— Sabe o senhor qual é o rapaz
que vem ocupando o pensamento dessa
moça?
— Sei, mas deixa-me explicar —
clareou Félix com brandura. — Principiemos por aceitar Nemésio na posição em
que se encontra. Como exigir da criança experiência da madureza ou pedir
raciocínio certo ao alienado mental? Sabemos que crescimento do corpo não
expressa altura de espírito. Nemésio é aluno da vida, qual nós mesmos, sem o
benefício da lição em que estamos sendo instruídos. Que seria de nós, na
situação dele, sem a visão que atualmente nos favorece? Provavelmente, cairíamos
em condições piores...
— Quer dizer que devo aprová-lo?
— Ninguém aplaude a enfermidade,
nem louva o desequilíbrio; no entanto, seria crueldade recusar simpatia e
medicação ao doente. Consideremos que Nemésio não é um companheiro desprezível.
Emaranhou-se em sugestões perigosas, mas não fugiu da esposa a quem presta
assistência; mostra-se engodado por extravagâncias emotivas de caráter
deprimente que lhe dilapidam as forças; contudo, não esqueceu a solidariedade,
resolvendo oferecer casa própria e gratuita à senhora que lhe presta serviços
remunerados; acredita-se dono de juvenilidade física absolutamente irrisória,
quando, na realidade, carrega um corpo em prematuro desgaste; dedica-se
apaixonadamente a uma jovem que o menoscaba, conquanto lhe consagre apreço
respeitoso...
Não bastariam estas razões para
merecer benevolência e carinho? Quem de
nós com a possibilidade de
auxiliar? Ele que anda cego ou nós que discernimos?
Não posso enaltecer-lhe as
manobras lamentáveis, na esfera do sentimento;
entretanto, sou obrigado a
confessar que ele, na ficha de analfabeto das verdades da alma, ainda não
tombou de todo...
Com significativo tom de voz, o
instrutor acentuou:
— Neves, Neves! A sublimação
progressiva do sexo, em cada um de nós, é
fornalha candente de sacrifícios
continuados. Não nos cabe condenar alguém por faltas em que talvez possamos
incidir ou nas quais tenhamos sido passíveis de culpa em outras ocasiões.
Compreendamos para que sejamos
compreendidos.
Neves silenciou, decerto
controlado pela influência do amigo venerável, e,
quando consegui fitá-lo, depois
de alguns momentos de expectativa, percebi que se pusera, humildemente, em
oração.
Final do capítulo 4
O
marido de Beatriz acentuava, em transportes de felicidade juvenil, embora a voz
ciciante, o anseio com que lhe aguardava o carinho permanente no refúgio
caseiro.
De
inopinado, porém, a jovem prorrompeu em pranto copioso. O companheiro beijou-lhe
a face, aspirando a aliviar-lhe a tensão convulsiva.
De
nosso lado, entretanto, reparávamos que Marina se fixava, cada vez mais, no moço
cuja figura se lhe engastava à imaginação.
Escabroso,
sem dúvida, o conflito de que se verificava possuída, à vista da sinceridade
inequívoca de todas as promessas que lhe eram endereçadas.
Olvidando
os compromissos abraçados, perante a esposa, que lhe requisitava, naquela hora,
mais amplas evidências de fidelidade e ternura, bandeara-se
o
chefe da casa, apaixonadamente, para ela, entregando-se-lhe sem reservas.
Inteligente
bastante para entender quanto se lhe debilitara o raciocínio de homem circunspecto,
a menina identificava a fase perigosa da partida infeliz a que se lançara e
aturdia-se, ali, confundida entre aflições e remorsos a lhe arpoarem o coração.
Compelidos
pelas circunstâncias à penetração dos assuntos em exame, assinalávamos as telas
mentais da moça, a se lhe derramarem do íntimo, irradiando-lhe a história.
Fizera-se
querida pelo maduro genro de Neves, sem dedicar-lhe outros sentimentos que não
fossem reconhecimento e admiração... Todavia, agora que os acontecimentos lhe
impeliam a alma na direção de laços mais profundos, tremia pelas indébitas
concessões que lhe havia feito. Remoia-lhe no espírito as recônditas reminiscências
de sua aventura afetiva, recapitulando todos os sucessos pelos quais havia atraído
o protetor experiente aos seus métodos sutis de sedução, para concluir, assustada,
que amava até à loucura aquele rapaz franzino, que se lhe destacava do pensamento,
através de cativantes apelos da memória.
Dentro
dela, embatia-se guerra terrível de emoções e sensações.
Nemésio
consolava-a, formulando frases de paternal solicitude. E, ao Responder-lhe às
reiteradas perguntas, quanto ao choro intempestivo, a jovem adotou largo
processo de perfeita dissimulação, invocando problemas domésticos para articular
evasivas com que encobria a realidade.
Tentando
esquivar-se de si mesma, reportou-se a supostas agruras do lar.
Salientou
exigências maternas, falou em dificuldades financeiras, alegou fantásticas humilhações
que colhia no trato da irmã adotiva, mencionou incompreensões do genitor, em
rixas constantes nos círculos da família...
O
interlocutor reconfortou-a.
Que
não se amofinasse. Não estaria a sós.Partilhar-lhe-ia todos os impedimentos e
dissabores, fossem quais fossem. Tivesse paciência. O desenlace de Beatriz,
indicado para breves dias, ser-lhes-ia o marco fundamental da ventura
definitiva.
Exprimia-se
Nemésio em tom de súplica. E talvez percebendo que apenas à força de palavras não
conseguiria subtraí-la aos soluços, arrancou de pasta próxima um livro de
cheques, colocando-lhe expressivo concurso amoedado nas mãos que o lenço
molhado umedecera.
A
moça pareceu mais comovida, exibindo no rosto a apreensão de quem se recriminava
sem qualquer justificativa de consciência, ao passo que ele a enlaçava, afetuoso.
No silêncio que sobreveio, voltei-me para Neves, mas não consegui pronunciar
palavra.
Não
obstante desencarnado, o amigo se me afigurava agora um homem positivamente
vulgar da Terra, que a revolta azedava. Sobrecenho crispado alterava-lhe a feição
no desequilíbrio vibratório que precede as grandes crises de violência.
Receava
se lhe transfigurasse a calamidade emotiva em agressão, mas sucedeu o imprevisto.
A
súbitas, venerando amigo espiritual penetrou a câmara. Arrebatadora expressão
de simpatia marcava-lhe a presença. Radioso halo circundava-lhe
a
cabeça; no entanto, não era a luz suave a se lhe extravasar docemente da aura
de sabedoria que me impressionava e sim a substância invisível de amor que lhe
emanava da individualidade sublime.
Fitei-lhe
os olhos, de relance, com a idéia enternecedora de quem revia um companheiro,
longamente esperado por aflitivas saudades acumuladas no coração.
Fluidos
calmantes banhavam-me todo, qual se fosse visitado no âmago do ser por inexplicáveis
radiações de envolvente alegria.
Onde
teria conhecido, nas trilhas do destino, aquele amigo que se me impôs ao
sentimento qual irmão de velhos tempos? Debalde vascolejei a memória naqueles segundos
inolvidáveis.
Num
átimo, vime recambiado às sensações puras da infância. O emissário, que
estacara à frente de nós, não me fazia retomar simplesmente a segurança a que me
habituara, quando menino, ante os braços paternos, mas também ao carinho de minha
mãe, que nunca se me apartara do pensamento.
Oh!
Deus, em que forja da vida se constituem esses elos da alma? Em que raízes de júbilo
e sofrimento, através das reencarnações numerosas de trabalho e esperança, dívidas
e resgates, se compõe a seiva divina do amor que aproxima os seres e lhes
transfunde os sentimentos numa só vibração de confiança recíproca?
Levantei
meus olhos de novo para o benfeitor que se avizinhava e fui compelido a sofrear
a própria emotividade a fim de não retê-lo instintivamente em arremessos de
regozijo.
Erguemo-nos
de chofre.
Após
cumprimenta-lo, disse Neves, então desanuviado, a apresentar-me quase sorrindo:
–
André, abrace o irmão Félix...
Adiantou-se,
porém, o recém chegado, ofertando-me um abraço e proferindo saudação calorosa,
com o evidente propósito de frustrar quaisquer elogios no nascedouro.
–
Grande contentamento o de vê-lo
–
disse, benevolente. – Deus o abençoe,meu amigo...
A
comoção, entretanto, imobilizava-me.
Não
logrei arrancar do coração à boca as expressões com que anelava pintar o meu
enlevo, mas osculei-lhe a destra com a simplicidade de uma criança, rogando-lhe
mentalmente receber as lágrimas que me caíam da alma, por mudo agradecimento.
Ocorreu,
em seguida, algo de inusitado.
Nemésio
e Marina transferiram-se, de repente, a novo campo de espírito. Confirmei a
impressão de que a nossa curiosidade enfermiça e a revolta que dominava Neves
até então haviam funcionado ali por estímulos ao magnetismo
animal
a que se ajustavam os dois enamorados, que nem de leve desconfiavam da minuciosa
observação a que se viam sujeitos, porquanto bastou que o irmão Félix lhes
dirigisse compassivo olhar para que se modificassem, incontinenti.
A
visão de Beatriz enferma cortou-lhes o espaço mental, à feição de um raio. Esmoreceram-se-lhes
os estos de paixão. Assemelhavam-se ambos a um par de crianças, atraídas uma
para a outra, cujo pensamento se transfigura, de improviso, ante a presença
materna.
E
não era só isso. Não podia auscultar o mundo íntimo de Neves; contudo, de minha
parte, súbita compreensão me inundou a alma. E se eu estivesse no lugar de Nemésio?
Estaria agindo melhor?
–Silenciosas
indagações se me incrustavam na consciência, impelindo-me
o
espírito a raciocinar em nível mais alto.
Fitei
o atribulado chefe da casa, possuído de novos sentimentos, percebendo nele um
verdadeiro irmão que me cabia entender e respeitar.
Embora
confessando a mim mesmo, com indisfarçável remorso, a impropriedade da atitude
que assumira, momentos antes, prossegui estudando a metamorfose espiritual que
se processava.
Marina
passou a revelar benéfica reação, como se estivesse admiravelmente conduzida em
ocorrência mediúnica, de antemão preparada. Recompôs-se, do ponto de vista
emotivo, patenteando integral desinteresse por qualquer forma de entretenimento
físico, e falou, com delicadeza, da necessidade de voltar aos
cuidados
que a doente exigia.
Nemésio, a refletir-lhe a renovada posição
interior, não ofereceu qualquer embargo, acomodando-se em poltrona próxima,
enquanto a jovem se retirava, tranqüila.
Reparei
que Neves ansiava conversar, desabafar-se; no entanto, o benfeitor, que nos
granjeara os corações, apontou o esposo de Dona Beatriz e convidou:
–
Meus amigos, nosso Nemésio está seriamente enfermo, sem que ainda o saiba.
Ignoro se já lhe notaram a deficiência orgânica... Procuremos socorre-lo.
ESTUDO DO DIA 15/04/2013
Capítulo 4
Acomodados,
de novo, no aposento próximo, buscava soerguer o ânimo de
Neves,
positivamente desapontado.
Arrojara-se
o companheiro ao clima da dignidade ofendida, dando a
impressão
de que a família encarnada ainda lhe pertencia. Exprobrava a conduta do genro.
Exalçava os merecimentos da filha. Aludia ao passado, quando ele próprio vencera
lances difíceis na luta sentimental.
Desculpava-se.
Ouvia-lhe, condoído, os apontamentos, a refletir, de minha parte, quanto à dificuldade
com que somos todos nós defrontados para dissipar a ilusão da posse sobre os
outros. Não fosse a obrigação de respeitar-lhe
os
sentimentos e, certo, me exorbitaria, ali mesmo, em comprida tirada filosófica,
recomendando o desprendimento: contudo, logrei apenas conforta-lo:
–
Não se aflija. Desde muito aprendi que para as pessoas desencarnadas,
quase
sempre, as portas do lar se fecham no mundo, quando a morte lhes cerra os olhos.
Entretanto,
não pude prosseguir.
À
guisa de duas crianças enlevadas e jubilosas, Nemésio e Marina penetraram a câmara,
fugindo claramente à presença da enferma.
Guardavam
no semblante a expressão dos namorados felizes, quando alimentam o clássico “enfim
sós”, trancando-se contentes.
Dispus-me,
instintivamente, a sair, mas Neves sustou-me o impulso de retirada, convidando-me,
aturdido:
–
Fique, fique... Não louvo a indiscrição; no entanto, estou, ao lado de minha
filha, em sentido direto, simplesmente há alguns dias e devo saber o que
ocorre,
para ser útil...
A
esse tempo, Nemésio enlaçara a enfermeira, qual se voltasse, de improviso, aos
arrebatamentos da juventude. Amimava-lhe as mãos miúdas e os cabelos sedosos,
reportando-se ao futuro. Justificava-se, copiando as preocupações de um
adolescente, interessado em vacinar a escolhida contra o ciúme.
Deveriam
ser bons para Beatriz, às portas do fim, e agradecer ao destino que os livrava dos
aborrecimentos e percalços de um desquite, mesmo amigável... Ouvira o médico,
na véspera, informando-se de que a doente não conseguiria viver mais que
algumas semanas.
E
sorria, qual menino travesso, explicando que não admitia a sobrevivência da
alma; no entanto, a seu ver, se houvesse vida além da morte, não desejava que a esposa partisse, nutrindo por eles
ressentimentos quaisquer.
Apaixonado, procurava
convencer-se de que se via correspondido, cravando a
atenção nos olhos enigmáticos
da companheira, a quem se reconhecia imanizado por intensa atração.
Marina
retribuía, como quem se deixava querer bem; no entanto, apresentava o fenômeno
singular da emoção jungida a ele e o pensamento voltado ao outro, empenhando-se,
por todos os meios, a encontrar nesse outro o incentivo necessário a essa mesma
emoção.
Nemésio
comentava os próprios empeços, sensibilizado.
Confessava-lhe
devoção inexcedível. Não a queria de ânimo inquieto. De futuro, abandonaria os
negócios. Viveriam felizes, na casinha de São Conrado, que transformaria em
bangalô confortável, entre o verde do mar e o verde da terra.
Mandaria
aprestar a reconstrução em estilo novo, a fim de que a moradia os recebesse, no
momento oportuno. Que ela confiasse. Aguardaria apenas a modificação do próprio
estado social para conferir-lhe o título de esposa, esposa para sempre.
Isso tudo era dito num jogo
de manifestações carinhosas em que a sinceridade prevalecia num lado e o cálculo
no outro.
Assinalei, porém, estranha
ocorrência.
Ele
e ela comunicavam-se, entre si, as mais ternas expansões de encantamento recíproco,
sem ser dissoluto, e pareciam aderir, automaticamente, às impressões que esboçávamos,
de vez que acompanháva-mos os mínimos gestos dos dois,
com aguçada observação, prejulgando-lhes os desígnios com o fundo de nossas próprias
experiências inferiores já superadas.
Semelhantes
registros que formulamos, com absoluta imparcialidade, são dignos de nota,
porquanto, atento qual me achava ao estudo, vimo-nos obrigados a reconhecer que
a nossa expectativa maliciosa, aliada ao espírito de censura, estabelecia correntes
mentais estimulantes da turvação psíquica de que ambos se viam acometidos,
correntes essas que, partindo de nós na direção deles, como que lhes agravava o
apetite sensual.
ESTUDO DO DIA 01/04/2013
Capítulo 3
Na peça isolada, o amigo cravou os olhos lúcidos nos meus e obtemperou:
– Após a desencarnação, achamo-nos na segunda fase da própria existência e ninguém,, na Terra, imagina as novas condições que nos tomam de assalto...
De começo, renovamos a vida... Equipes salvadoras, apoio na prece, estudo das vibrações, escola da caridade. Ensaiamos, felizes, o culto dos grandes sentimentos humanos... Depois, quando trazidos, de retorno, ao trabalho mais íntimo, na arena doméstica, que supúnhamos varrida para sempre da memória, como na situação especial de meu caso, a didática é outra... É preciso espremer o sangue do coração para confirmar o que ensinamos com a cabeça...
Avalie que me encontro nesta casa, em serviço, apenas há vinte dias e já recebi tantas punhaladas na alma, que, não fossem as necessidades de minha filha, teria fugido, incontinenti... Sem minhas observações pessoais, não teria admitido tanta leviandade em meu genro... Bilontra, fanfarrão despudorado.
– Sim, sim... – tentei cortar as doloridas alegações.
Comentei, breve, a excelência do olvido de todo mal, argumentei quanto ao
merecimento do auxílio silencioso, através da oração.
Neves sorriu, meio desconsolado, e ajuntou:
– Compreendo que você se reporta à vantagem do pensamento positivo na fixação do bem e creia que, de minha parte, farei quanto puder para não esquecê-lo. Agora, porém, tolere, por favor, as minhas considerações talvez descabidas. ..
A Medicina é ciência luminosa, recheada de raciocínios puros; no entanto, muitas
vezes é obrigada a descer da alta cultura para dissecar os cadáveres...
Endereçou-me o olhar de alguém que anseia derramar-se noutro alguém e continuou:
– Saiba você que na quinta noite de minha permanência aqui, notando Beatriz em aguda crise de sofrimento, diligenciei buscar meu genro para assisti-la em pessoa... E sabe onde o encontrei? Nada de escritório, segundo a falsa informação que deixara em casa. Indignado, fui surpreendê-lo numa furna penumbrosa, em plena madrugada, junto da menina que você acaba de conhecer.
Os dois unidos, qual marido e mulher. Champanha correndo e música lasciva. Entidades
perturbadoras e perturbadas, jungidas ao corpo dos bailarinos, enquanto outras iam e vinham, a se inclinarem sobre taças, cujo conteúdo lábios entediados não haviam conseguido sorver totalmente. Em recanto multicolorido, onde algumas jovens exibiam formas seminuas em coleios esquisitos, vampiros articulavam trejeitos, completando, em sentido menos digno, os quadros que o mau gosto humano pretendia apresentar, em nome da arte. Tudo rasteiro, impróprio, inconveniente...
Fisguei meu genro e a colaboradora, nos braços um do outro, recordei minha filha doente e revoltei-me. Súbito desespero apossou-se de mim. Oscilou minha razão escurecida, pois cheguei a justificar, de relance, a deplorável atitude dos companheiros desencarnados que se transformam em vingadores intransigentes.
O“homem-velho”que eu fora e o “homem renovado” que aspiro a ser digladiavam em
minhas fibras recônditas...
Estacou numa pausa, rearticulando os pensamentos, e continuou:
– Tinha visto, apavorado, em outro tempo, aqueles que se animalizavam, depois da morte, nos lares que lhes haviam sido reduto à felicidade, a se precipitarem, violentos, sobre os entes amados que lhes desertavam da afeição...
Funcionara, entusiasmado, em diversas comissões socorristas, procurando esclarecê-los
e modificá-los para o bem, a fazer-lhes sentir que as lutas morais, depois da desencarnação, se erigiriam igualmente em penosa herança para todos aqueles com os quais se desarmonizavam; advertia-os de que o túmulo esperava também quantos, na Terra, lhes sonegavam lealdade e ternura...
E, bastas vezes, lograva acalmá-los para a retirada benéfica. Mas ali.. Imprudentemente agastado contra a insensibilidade do homem que me desposara a filha querida, vime chamado a praticar os bons conselhos que havia administrado...
O amigo fez ligeiro intervalo, enxugou as lágrimas que lhe corriam no rosto, ao evocar a própria inconformação, e completou a frase, aditando:
– Mas não pude. Tomado de cólera incoercível, avancei, qual fera desacorrentada, e, irrefletidamente, esmurrei-lhe a face. Ele deixou-se cair nos ombros da companheira, acusando agoniada indisposição, como se estivesse sob o impacto de súbita lipotimia...
Dispunha-me, em seguida, a torcer-lhe o corpo, em meus braços rijos; entretanto, não consegui. Uma senhora desencarnada, de semblante nobre e calmo, aproximou, desarmando-me o íntimo. Não entremostrava sinais exteriores de elevação. Patenteava-se, aliás, tão profundamente humana, quanto nós mesmos. Diferenciava-se apenas através de minúsculo distintivo luminoso, que lhe brilhava palidamente no peito, qual joia rara a emitir discreta radiação. Afagou- me, de leve, a cabeça e induziu-me à serenidade.
Envergonhado, fitei-a, constrangido. A dama inesperada não me censurou, nem fez qualquer alusão ao meu gesto infeliz. Ao revés, falou-me com bondade, quanto à filha doente.
Demonstrava conhecer Beatriz, tanto quanto eu próprio. E acabou convidando-me a sair do recinto, para acompanhá-la até ao quarto da enferma. Atendi sem relutância. E porque a gentil interventora, no trajeto, somente se reportasse aos méritos da compreensão e da tolerância, sem qualquer referência aos desvarios da casa que vínhamos de deixar, procurei reprimir-me, para cogitar, exclusivamente, de socorro à filha em dificuldade.
A mensageira anônima recolocou-me no lar, despedindo-se, delicada; e depois disso não mais a vi, pelo que, ainda agora, me lembro dela, positivamente intrigado...
Ensaiava alguma observação reconfortante, rememorando minhas experiências, quando Neves, interpretando-me os pensamentos, obtemperou depois de longa pausa:
– Você, André, nunca se viu defrontado por acontecimentos assim desagradáveis?
Recordei, emocionadamente, as primeiras impressões que me haviam transtornado a sensibilidade, após a desencarnação. Reconstituí na memória todas as telas em que me surpreendera desanimado, excitado, dilacerado, vencido...
As transformações domésticas, os empeços familiares, os impositivos da luta humana e as sugestões da natureza física que me haviam alterado a esposa e os filhos, na Terra, quando se reconheceram sem a minha presença direta, retornaram-me ao coração.
Senti-me mais estreitamente ligado ao meu interlocutor,assimilando-lhe o torturado influxo mental, e comentei:
– Sim, meu amigo, atravessada a grande barreira, os meus problemas, a princípio, foram enormes...
Entretanto, não foi possível desabafar-me.
Cavalheiro maduro e simpático penetrou o recinto, compreensivelmente sem perceber-nos.
Neves, contrafeito, indicou-o, explicando-me:
– É Nemésio, meu genro...
O recém-chegado mirou-se, atenciosamente, em espelho próximo, repassou lenço alvo sobre a testa suarenta e, quando reajustava a gravata bemposta, escutou prolongado suspiro.
Lançou-se, incontinenti, para a câmara contígua e seguimo-lo.
Marina veio recebê-lo com amável sorriso, conduzindo-o à cabeceira da senhora, que passou a fitá-lo entre confortada e abatida.
Dona Beatriz estendeu a mão descarnada que o marido beijou. Trocando com ela enternecido olhar, acomodou-se Nemésio rente aos travesseiros, a endereçar-lhe perguntas carinhosas, ao mesmo tempo em que lhe alisava a descuidada cabeleira.
A doente pronunciou algumas palavras breves, diligenciando agradá-lo, e ajuntou:
– Nemésio, você me perdoará se volto ao caso de Olímpia... A pobre criatura perdeu a casa quase que totalmente... É necessário que você lhe garanta abrigo seguro... Penso nela com os filhos ao desamparo. Tire-me dessa aflição...
O interpelado mostrou profunda emotividade e respondeu, cortês:
– Beatriz, não há dúvida alguma. Já enviei um amigo, construtor experiente, ao local. Não se preocupe, tudo faremos sem qualquer sacrifício. Questão de tempo...
– Receio partir de uma hora para outra...
– Partir para onde?
Nemésio acariciou-lhe a fronte descolorida, sacou um sorriso amargo e prosseguiu:
– Enquanto você estiver em tratamento, nossas viagens estão sustadas. Não é hora de São Lourenço...
– Minha estação curativa será outra.
– Não me fale em pessimismo... Ora, ora... Onde a primavera de nossa casa? Você anda esquecida de que nos ensinou a colocar alegria em tudo? Largue os ares sombrios... Ainda ontem, ouvi nosso médico. Você entrará em convalescença, já, já... Amanhã tomarei providências definitivas para que o barraco seja levantado.
Você estará restabelecida em breve e ambos iremos ao primeiro café em casa de nossa Olímpia...
Dona Beatriz, ante o carinho dele, pareceu reanimar-se.
Entreabriu-se-lhe a boca num largo sorriso, que se me afigurou uma flor de esperança num cacto de sofrimento.
Aqueles olhos imensamente lúcidos derramaram duas lágrimas de felicidade que o esposo enxugou com gracioso gesto. Na face amarelada, lampejaram raios de confiança.
Experimentando-se mentalmente renovada, a enferma acreditou no reerguimento do corpo físico e ansiou viver, viver por muito tempo ainda no aconchego familiar. Manifestando o próprio reconforto, solicitou de Marina uma chávena de leite.
A enfermeira atendeu, comovida. E, enquanto a doente sorvia o líqüido, gole a gole, refleti na bondade daquele homem que a palavra do companheiro me apresentara noutras cores.
O pensamento de Nemésio revelara-se-nos, até ali, claro e puro. Trazia Dona Beatriz no cérebro, nos olhos, nos ouvidos, no coração. Dispensava-lhe a compreensão de um amigo, a ternura de um pai.
Neves endereçava-me estranho olhar, qual se estivesse, tanto quanto eu, defrontado por indizível assombro.
Alguns momentos escoaram-se, rápidos.
Quando a enferma devolveu a xícara, outro quadro se nos desdobrou à visão.
Nemésio levantara-se rente ao leito e, por trás da cabeceira alteada, estendeu a Marina, que se mantinha do lado oposto, a mão grossa e hirsuta a que ela entregou a destra alva e leve.
O marido passou, então, a falar brandas palavras para a esposa satisfeita, afagando, simultaneamente, os róseos dedos da jovem que, pouco a pouco, se desinibia, através do olhar brejeiro.
Contemplei Nemésio, admirado. Alteravam-se-lhe agora os pensamentos, que me pareceram, então, incompatíveis com a sensação de respeitabilidade que ele nos inspirava.
Voltei-me, instintivamente, para Neves e ele, indicando-me as duas mãos que se acariciavam, uma à outra, exclamou para mim:
– Este homem é um enigma.
Recordei, emocionadamente, as primeiras impressões que me haviam transtornado a sensibilidade, após a desencarnação. Reconstituí na memória todas as telas em que me surpreendera desanimado, excitado, dilacerado, vencido...
As transformações domésticas, os empeços familiares, os impositivos da luta humana e as sugestões da natureza física que me haviam alterado a esposa e os filhos, na Terra, quando se reconheceram sem a minha presença direta, retornaram-me ao coração.
Senti-me mais estreitamente ligado ao meu interlocutor,assimilando-lhe o torturado influxo mental, e comentei:
– Sim, meu amigo, atravessada a grande barreira, os meus problemas, a princípio, foram enormes...
Entretanto, não foi possível desabafar-me.
Cavalheiro maduro e simpático penetrou o recinto, compreensivelmente sem perceber-nos.
Neves, contrafeito, indicou-o, explicando-me:
– É Nemésio, meu genro...
O recém-chegado mirou-se, atenciosamente, em espelho próximo, repassou lenço alvo sobre a testa suarenta e, quando reajustava a gravata bemposta, escutou prolongado suspiro.
Lançou-se, incontinenti, para a câmara contígua e seguimo-lo.
Marina veio recebê-lo com amável sorriso, conduzindo-o à cabeceira da senhora, que passou a fitá-lo entre confortada e abatida.
Dona Beatriz estendeu a mão descarnada que o marido beijou. Trocando com ela enternecido olhar, acomodou-se Nemésio rente aos travesseiros, a endereçar-lhe perguntas carinhosas, ao mesmo tempo em que lhe alisava a descuidada cabeleira.
A doente pronunciou algumas palavras breves, diligenciando agradá-lo, e ajuntou:
– Nemésio, você me perdoará se volto ao caso de Olímpia... A pobre criatura perdeu a casa quase que totalmente... É necessário que você lhe garanta abrigo seguro... Penso nela com os filhos ao desamparo. Tire-me dessa aflição...
O interpelado mostrou profunda emotividade e respondeu, cortês:
– Beatriz, não há dúvida alguma. Já enviei um amigo, construtor experiente, ao local. Não se preocupe, tudo faremos sem qualquer sacrifício. Questão de tempo...
– Receio partir de uma hora para outra...
– Partir para onde?
Nemésio acariciou-lhe a fronte descolorida, sacou um sorriso amargo e prosseguiu:
– Enquanto você estiver em tratamento, nossas viagens estão sustadas. Não é hora de São Lourenço...
– Minha estação curativa será outra.
– Não me fale em pessimismo... Ora, ora... Onde a primavera de nossa casa? Você anda esquecida de que nos ensinou a colocar alegria em tudo? Largue os ares sombrios... Ainda ontem, ouvi nosso médico. Você entrará em convalescença, já, já... Amanhã tomarei providências definitivas para que o barraco seja levantado.
Você estará restabelecida em breve e ambos iremos ao primeiro café em casa de nossa Olímpia...
Dona Beatriz, ante o carinho dele, pareceu reanimar-se.
Entreabriu-se-lhe a boca num largo sorriso, que se me afigurou uma flor de esperança num cacto de sofrimento.
Aqueles olhos imensamente lúcidos derramaram duas lágrimas de felicidade que o esposo enxugou com gracioso gesto. Na face amarelada, lampejaram raios de confiança.
Experimentando-se mentalmente renovada, a enferma acreditou no reerguimento do corpo físico e ansiou viver, viver por muito tempo ainda no aconchego familiar. Manifestando o próprio reconforto, solicitou de Marina uma chávena de leite.
A enfermeira atendeu, comovida. E, enquanto a doente sorvia o líqüido, gole a gole, refleti na bondade daquele homem que a palavra do companheiro me apresentara noutras cores.
O pensamento de Nemésio revelara-se-nos, até ali, claro e puro. Trazia Dona Beatriz no cérebro, nos olhos, nos ouvidos, no coração. Dispensava-lhe a compreensão de um amigo, a ternura de um pai.
Neves endereçava-me estranho olhar, qual se estivesse, tanto quanto eu, defrontado por indizível assombro.
Alguns momentos escoaram-se, rápidos.
Quando a enferma devolveu a xícara, outro quadro se nos desdobrou à visão.
Nemésio levantara-se rente ao leito e, por trás da cabeceira alteada, estendeu a Marina, que se mantinha do lado oposto, a mão grossa e hirsuta a que ela entregou a destra alva e leve.
O marido passou, então, a falar brandas palavras para a esposa satisfeita, afagando, simultaneamente, os róseos dedos da jovem que, pouco a pouco, se desinibia, através do olhar brejeiro.
Contemplei Nemésio, admirado. Alteravam-se-lhe agora os pensamentos, que me pareceram, então, incompatíveis com a sensação de respeitabilidade que ele nos inspirava.
Voltei-me, instintivamente, para Neves e ele, indicando-me as duas mãos que se acariciavam, uma à outra, exclamou para mim:
– Este homem é um enigma.
Capítulo 2
Repousava Dona Beatriz no leito bem posto,patenteando enorme cansaço.
A doença, decerto, consumia-lhe a forma física, desde muito, porquanto aos quarenta e sete anos de idade mostrava o rosto singularmente engelhado e o corpo
leve.
Refletia, ensimesmada, tristonha... Fácil de se lhe ver a preocupação, ante a crise iminente. Idéias a lhe fluírem, vivas e nobres, indicavam que se habituara à certeza da desencarnação próxima. Notava-se-lhe fixada no pensamento a convicção do viajante que atingira o término de espinhosa trilha, da qual, por fim, lhe competia sair.
Conquanto tranquila inquietava-se pelos vínculos que a prendiam no mundo. Apesar disso, visualizava as portas do Além, plasmando formosos quadros íntimos, como quem sonha à luz da vigília, e recordava Neves, o pai que perdera na infância, qual se visse prestes a recuperá-lo,em definitivo, tal a extensão do amor que os acolchetava um ao outro.
Observávamos, porém, sem dificuldade, que a alma afetuosa da enferma se dividia mais fortemente, na Terra, entre o esposo e o filho, dos quais se reconhecia em gradativo processo de inevitável separação.
No aposento acolhedor, que alguns adereços ataviavam, tudo transparecia limpeza, reconforto, assistência, carinho. Ante o leito, encontramos sisudo enfermeiro desencarnado que Neves abraçou, demonstrando guardá-lo à conta de imensa estima.
E apresentou-nos:
– Amaro, temos aqui André Luiz, amigo e médico que, doravante, nos partilhará os serviços.
Saldamo-nos cordialmente.
Neves inquiriu, atencioso:
– O irmão Félix veio hoje?
– Sim, como sempre.
Informei-me, então, de que o irmão Félix, desde muitos anos, era o superintendente de importante casa socorrista, ligada ao Ministério da Regeneração, em Nosso Lar 2 . Famoso pela bondade e paciência, era conhecido como sendo um apóstolo da abnegação e do bom senso.
2 Organizações no Plano dos Espíritos. (Nota do Autor Espiritual)
Não dispúnhamos, entretanto, de qualquer tempo para considerações pessoais.
Dona Beatriz experimentava dores agudas e o companheiro mostrou o propósito de aliviá-la,
através do passe confortativo, enquanto a senhora se via aparentemente a sós. Em grande prostração física, revelava profunda sensibilidade mediúnica.
Oh! Os sublimes pensamentos do leito de dor!... De olhos cerrados, a doente, embora não assinalasse a presença paterna, lembrava a ternura do genitor, que lhe parecia distante e inacessível no tempo. Identificava-se, de novo, com a ingenuidade infantil... Na acústica da memória, ouvia as canções do lar, voltava, encantada, às horas da meninice... Reconstituindo na imaginação as relíquias do berço, sentia-se no regaço paternal, à maneira da ave de regresso à penugem do ninho!
Dona Beatriz chorava. Lágrimas de enternecimento inexprimível perolavam-lhe a face. E sem que a boca enunciasse o menor movimento, clamava intimamente com toda a alma: “pai, meu pai!...”
Meditai, vós que, no mundo, admitis para os desencarnados a indiferença da cinza! Para lá dos túmulos, amor e saudade muitas vezes se transformam, no vaso do coração, em pranto comburente!
Neves cambaleou, agoniado... Enlacei-o,contudo, a pedir-lhe coragem. A ventania da angústia, porém, sobre o ânimo do companheiro atribulado, perdurou apenas alguns momentos. Refeito, a recompor o semblante que o sofrimento transfigurara, espalmou a destra na fronte da filha e orou, suplicando o amparo da Bondade Divina. Chispas de luz, quais minúsculas flamas azulíneas, evolavam-lhe do tórax, a se projetarem naquele corpo fatigado, revestindo-o de energias calmantes.
Emocionado, observei que Dona Beatriz se acomodava a suave torpor. E antes que pudesse enunciar qualquer impressão, uma jovem, figurando-se nas vinte primaveras da experiência física, entrou cautelosamente no quarto. Renteou conosco, sem perceber-nos, de leve, e tomou o pulso da enferma, verificando-lhe as condições.
A recém chegada esboçou o gesto de quem reconhecia tudo em ordem. Encaminhou-se,
logo após, na direção de pequenino armário próximo e, munindo-se dos recursos necessários, voltou à cabeceira da dona da casa, aplicando-lhe injeção anestesiante.
Dona Beatriz não mostrou a mínima reação, continuando a descansar, sem dormir. O concurso magnético de minutos antes insensibilizara-lhe os centros nervosos.
Perfeitamente tranquila, a moça, na qual observávamos a posição da enfermeira improvisada, retirou-se para um dos ângulos do aposento, a largar-se em acolhedora poltrona de vime. Em seguida, descerrou um dos segmentos da janela quadripartida, atraindo a corrente de ar fresco que nos bafejou sem alarde.
Respirando à saciedade, a jovem, com grande surpresa para mim, acendeu um cigarro e passou a fumar distraidamente, dando a ideia de quem diligenciava fugir de si mesma.
Neves fitou-a, deitando-lhe significativo olhar em que se mesclavam piedade e revolta e, indicando-a,discreto, informou-me:
– Tratas-e de Marina, contadora de meu genro, que se dedica ao comércio de imóveis... Agora, a pedido dele, desempenha funções de assistente...
Evidente sarcasmo transparecia-lhe da palavra reticenciosa.
– Imagine! – voltou a dizer – fumar aqui, numa câmara de dor, onde a morte está sendo esperada!...
Contemplei Marina, cujos olhos denotavam recôndita inquietude. Manifestando ainda alguns laivos de respeitosa estima para com a nobre senhora estirada no leito, soprava, para além da janela, as baforadas cinzentas que lhe escapavam da boca.
Repartindo a própria atenção entre ela e Amaro, o nosso amigo da esfera espiritual, Neves, conquanto mudo e constrangido, parecia querer falar à vontade e desinibir-se. Tentei, porém, adquirir mais amplo conhecimento da posição.
Aproximei-me reverentemente da jovem, no propósito de sondá-la em silêncio e colher-lhe
as vibrações mais intimas; contudo, recuei assustado.
Estranhas formas pensamentos, retratando-lhe os hábitos e anseios, em contradição com os nossos propósitos de socorrer a doente, fizeram-me para logo sentir que Marina se achava ali, a contragosto. A sua mente vagueava longe...
Quadros vivos de esfuziante agitação ressumavam-lhe na cabeça...
De olhar parado, escutava, adentro de si própria, a música brejeira da noite festiva, que atravessara na véspera, e experimentava ainda na garganta a impressão do gim que sorvera, abundante.
Apesar de surgirmos, superficialmente, à guisa de menina crescida, sob o turbilhão de névoa fumarenta, exibia telas mentais complexas, a lhe relampaguearem na aura imprecisa.
Trazido pelas circunstâncias a colaborar na solução de um processo assistencial, sem qualquer intuito menos digno, passei a estudar-lhe o comportamento isolado. A Medicina terrestre, no futuro, para atender com eficácia, ao doente, examinar-lhe-á, com minúcias, a feição espiritual de todas as peças humanas que lhe articulam a equipe.
Respeitoso, iniciei os apontamentos de ampla anamnese psicológica. Marina apresentou, a princípio, a figura de um homem amadurecido, cunhada por sua própria imaginação, a repetir-se-lhe, muitas vezes, acima da fronte. Ela e ele, juntos... Percebia-se-lhes, de pronto, a intimidade, adivinhava-se-lhes o romance...
Fisicamente, semelhavam pai e filha; entretanto, pelas atitudes sentimentais, não conseguiam disfarçar a estuante paixão um pelo outro.
Nos painéis sutis que surgiam e se desfaziam, alternadamente, mostravam-se ambos extasiados, ébrios de prazer, fosse aboletados no automóvel de luxo ou enlaçados na areia morna das praias, conchegados sob a proteção de arvoredo tranqüilo ou sorridentes em tumultuados abrigos de encantamento noturno... Deslumbrantes paisagens de Copacabana ao Leblon desfilavam por admirável fundo pictórico.
A moça entrefechava as pálpebras para senhorear, com mais segurança, as reminiscências que lhe empolgavam os sentidos, para, logo após, mentalizar, surpreendentemente, outro homem, tão jovem quanto ela mesma, evidenciando-se nos entregue às cenas de um filme interior, diferente...
Formava novo tipo de palco para exibir a lembrança das próprias aventuras, no qual se destacava igualmente ao pé do rapaz, como se estivesse afeiçoada aos mesmos sítios, desfrutando companhias diversas... Ela e ele também juntos, no mesmo carro entrevisto ou na
condição de pedestres felizes, saboreando refrescos ou repousando em animados entendimentos nos jardins públicos, sugerindo o encontro de crianças enamoradas, a entretecerem aspirações e sonhos..
Naqueles rápidos minutos de fixação espiritual, em que se exteriorizava tal qual era, Marina revelava a personalidade dúplice da mulher dividida entre o carinho de dois homens, jugulada por pensamentos de medo e inquietude, ansiedade e arrependimento.
Neves, que de algum modo me partilhava a inspeção, quebrou a calma reinante, enunciando, abatido:
– Está vendo? Julga que é fácil para mim, pai da doente, suportar aqui semelhante criatura?
Tratei de consolá-lo e, por solicitação dele próprio, passamos a pequeno salão de leitura, contíguo ao aposento da enferma, a fim de que pudéssemos refletir e conversar.
ESTUDO DO DIA 11/03/2013
Capítulo 1
Qual acontece entre os homens, no Mundo Espiritual que os rodeia, sofrimento e expectação esmerilam a alma, disciplinando, aperfeiçoando, reconstruindo...
Enquanto envergamos a veste física, habitualmente imaginamos o paraíso das religiões encravado para lá da morte. Sonhamos o apaziguamento integral dos sentidos, o acesso à alegria inefável que anestesie toda lembrança convertida em chaga mental. No entanto, atravessada a fronteira de cinza, eis-nos erguidos à responsabilidade inevitável, ante o reencontro da própria consciência.
Uma vida humana, a continuar-se naturalmente no Além, assume, assim, a forma de partida, em dois tempos distintos. Diferem campos e vestimentas; entretanto, a luta da personalidade, de um renascimento a outro na Terra, afigura-se laborioso prélio em duas fases. Anverso e reverso da experiência. O berço inicia, O túmulo desdobra. Com raríssimas exceções na regra, somente a reencarnação consegue transfigurar-nos de modo fundamental.
Deixamos no esquife o casulo mirrado e transportamos conosco, na mesma ficha de identificação pessoal, para outras esferas, os ingredientes espirituais que cultivamos e atraímos.
Inteligências em evolução na eternidade do espaço e do tempo, os Espíritos domiciliados na Moradia Terrestre, em abandonando o invólucro de matéria mais densa, assemelham-se, figuradamente, aos insetos. Larvas existem que se retiram do ovo e revelam-se na condição de parasitas, enquanto que outras se transformam, de imediato, em fale-nas de prodigiosa beleza, ganhando altura.
Encontramos criaturas que se afastam do estojo carnal, entrando em largos processos obsessivos, nos quais se movimentam à custa de forças alheias, ao lado de outras que, de pronto, se elevam, aprimoradas e belas, a planos superiores da evolução. E entre as que se agarram profundamente às sensações da natureza física e as que conquistam a sublime ascensão para estágios edificantes, no Grande
Além, surge a gama infinita das posições em que se graduam.
Além, surge a gama infinita das posições em que se graduam.
Emergindo na Espiritualidade, após a desencarnação, sofremos, a princípio, o desencanto de todos os que esperavam pelo céu teológico, fácil de granjear. A verdade aparece por alavanca renovadora. Padecendo ainda espessa amnésia, relativamente ao passado remoto, que descansa nos porões da memória, somos então defrontados por velhos preconceitos que se nos entrechocam no íntimo, tombando despedaçados.
Suspiramos pela inércia que não existe. Exigimos resposta afirmativa aos absurdos da fé convencionalista e dogmática que reclama a integração com Deus para si só, excluindo, pretensiosamente, da Paternidade Divina, os que não lhe comunguem a visão acanhada.
Suspiramos pela inércia que não existe. Exigimos resposta afirmativa aos absurdos da fé convencionalista e dogmática que reclama a integração com Deus para si só, excluindo, pretensiosamente, da Paternidade Divina, os que não lhe comunguem a visão acanhada.
De semelhantes conflitos, por vezes terríveis e extenuantes, nos recessos da mente, muitos de nós saímos abatidos ou revoltados para extensas incursões no vampirismo ou no desespero; a maior parte dos desencarnados, porém, a pouco e pouco se acomoda às circunstâncias, aceitando a continuidade do trabalho na reeducação própria, com os resultados da existência aparentemente encerrada no mundo, à espera da reencarnação que possibilite renovação e recomeço...
Essas ponderações afogueavam-me o pensamento, reparando a tristeza e o cansaço do meu amigo Pedro Neves, devotado servidor do Ministério do Auxílio. (1) Partilhando expedições arrojadas e valorosas em atividade benemérita, ainda não lhe víramos hesitações quaisquer. Veterano de empreendimentos socorristas, jamais entremostrara desânimo ou fraqueza, por mais opressivo se lhe evidenciasse 9 o peso de compromissos e obrigações.
Advogado que fora, na existência última, caracterizava-se por extrema lucidez, no exame dos problemas que as eventualidades do caminho apresentassem. Sempre denodado e humilde; agora, porém, enunciava sensíveis alterações de comportamento.
Soubera-o com breves encargos, na esfera física, para atender, de modo mais direto, a necessidades de ordem familiar, cuja extensão e natureza não me houvera sido possível perceber.
Desde então, mostrava-se arredio e desencantado, copiando o feitio de companheiros recém-chegados da Terra. Isolava-se em funda reflexão. Fugia à conversação fraterna. Queixava-se disso ou daquilo. E vez por outra, em serviço, denotava lágrimas que não chegavam a cair.
Ninguém ousava sondar-lhe o sofrimento, tal a fibra moral em que se lhe exprimiam as atitudes.
Provocando, porém, algumas horas de desafogo, num banco de jardim, busquei habilmente lançá-lo à extroversão, alegando dificuldades que me preocupavam. Referi-me aos descendentes que deixara no mundo e às inquietações que me causavam.
Pressentia-lhe na tristeza a presença de lutas domésticas a lhe torturarem a alma, quais ulcerações em recidiva, e não me enganei.
O amigo absorveu a isca afetiva e desenovelou os sentimentos.(1) Organização de “Nosso Lar”. — Nota do Autor espiritual.
A principio, falou vagamente das apreensões que lhe assomavam ao espírito agoniado. Aspirava a esquecer, alhear-se; no entanto... a retaguarda familiar no mundo lhe infligia dolorosas reminiscências difíceis de extirpar.
— É a esposa quem o aflige, assim tanto?
— Aventurei, procurando localizar o carnicão da mágoa que lhe abria as comportas do pranto silencioso.
Pedro fitou-me com a postura dolorida de um cão batido e respondeu:
— Há momentos, André, nos quais será preciso biografar-nos, ainda que superficialmente, para vascolejar o pretérito e extrair dele a verdade, somente a verdade...
Meditou, algo sufocado por instantes, e prosseguiu:
— Não sou homem que me deixe governar por sentimentalismos, embora aprecie as emoções pelo justo valor. Além disso, a experiência, desde muito, me ensinou a raciocinar. Há quarenta anos, moro aqui e, há quase quarenta anos, a esposa compeliu-me a absoluto desinteresse do coração. Deixei-a quando a mocidade das energias físicas lhe estuava no sangue, e Enedina, compreensivelmente, não pôde sustentar-se a distância das exigências femininas.
E prosseguiu esclarecendo que ela se associara a outro homem, num segundo casamento, entregando-lhe seus três filhos por enteados. Esse novo marido, entretanto, arredou-a completamente de sua convivência espiritual. Homem ambicioso, senhoreou os cabedais que ele ajuntara, logrando multiplicá-los imensamente, à força de astúcia em arrojadas empresas comerciais. E agiu com tanta leviandade que a esposa, dantes simples, se apaixonou pelas comodidades demasiadas, gastando o tempo terrestre em prodigalidades e tafulices, até que se rojou às derradeiras viciações nos desvarios do sexo. Observando o esposo em 10 aventuras galantes, de modo permanente, na posição de cavalheiro rico e desocupado, quis desforrar-se, estabelecendo para si mesma desordenado culto ao prazer, mal sabendo que apenas se transviava, em lamentáveis desequilíbrios.
— E meus dois filhos, Jorge e Ernesto, ludibriados pelo fascínio do ouro com que o padrasto lhes comprava a subserviência, enlouqueceram no mesmo delírio do dinheiro fácil e se animalizaram a tal ponto que nem de leve guardam qualquer traço de minha memória, não obstante serem atualmente negociantes abastados, em idade madura...
— A esposa, no entanto, ainda se encontra no mundo físico? — arrisquei,
cortando a pausa longa, para que a explicação não esmorecesse.
— Minha pobre Enedina voltou, há dez anos, abandonando o corpo pela imposição da icterícia, que lhe apareceu por verdugo invisível, evocado pelas bebidas alcoólicas. Fitando-a, edemaciada, vencida, ensaiei alarmado todos os processos de socorro à minha disposição...
Atemorizava-me a perspectiva de vê-la escravizada às forças aviltantes a que se jungira sem perceber; ansiava retê-la no corpo de carne, como quem resguarda uma criança inconsciente em disfarçado refúgio. Entretanto, ai de mim! Colhida por entidades infelizes, às quais se consorciou levianamente, em vão procurei estender-lhe algum consolo, porquanto ela mesma, depois de desencarnada, se compraz na viciação, tentando a fuga impossível de si própria.
Não há outro recurso senão
Não há outro recurso senão
esperar, esperar...
— E os filhos?
— Jorge e Ernesto, hipnotizados pela riqueza material, para mim fizeram-se
inabordáveis.
Mentalmente, não me registram a lembrança. Intentando captar-lhes cooperação e simpatia, o padrasto chegou a insinuar que não seriam meus filhos e sim dele próprio, através de união com minha esposa. ao tempo de minha experiência terrestre, o que Enedina, infelizmente, não desmentiu...
O companheiro esboçou um sorriso amarelo e considerou:
— Imagine! Na carne, o medo é comum, à frente dos desencarnados e, em meu caso, fui eu quem se afastou do ambiente doméstico, sob sensações de insopitável horror... Ainda assim, a bondade de Deus não me arrojou à solidão, em se tratando da ternura familiar. Tenho uma filha de quem jamais me separei pelos laços do espírito... Beatriz, que deixei na flor da meninice, suportou pacientemente as afrontas e conservou-se fiel ao meu nome. Somos, assim, duas almas, na mesma faixa de entendimento...
Pedro enxugou os olhos e acrescentou:
— Agora, com quase meio século de existência entre os homens, presa embora ao carinho que consagra ao esposo e ao filho único, prepara-se Beatriz para o regresso... Minha filha vem atravessando os derradeiros dias terrenos, com o corpo torturado pelo câncer...
— Mas, atormenta-se você por isso? A ideia do reencontro pacífico não será, antes, motivo para alegrar-se?
— E os problemas, meu amigo? Os problemas do grupo consanguíneo Por muitos anos, estive à margem de todas as tricas do navio familiar... Fizera-me ao oceano largo da vida... Agora, por amor à filha inesquecível, sou compelido a topar, com espírito de caridade, a irreflexão e o descaramento. Estou inapto, desambientado... Desde que me postei à cabeceira da doente querida, vejo-me na condição do aluno debilitado pela expectativa de erros constantes.. 11
Dispunha-se Neves a prosseguir, mas urgente chamado de serviço nos impeliu à separação e, conquanto diligenciando acalmá-lo, despedi-me, sob o compromisso de irmanar-me a ele, nas tarefas de assistência à enferma, de modo mais intenso, a partir do dia seguinte.
ESTUDO DO DIA 25/02/2013
Prece no Limiar
Pai de Infinita Bondade!
Este é um livro em que permitiste ao nosso André Luis traçar, em lances palpitantes da existência, alguns conceitos da Espiritualidade Superior, em torno de sexo e destino — fotografia verbal de nossas realidades amargas que entremeaste de esperanças eternas.
Entregando-o aos companheiros reencarnados no mundo, queremos recordar Jesus — o Enviado de Tua Ilimitada Misericórdia — naquele dia de sol em Jerusalém...
Na praça repleta de acusadores, escribas e fariseus apresentaram-lhe sofredora mulher que diziam haver apanhado em transgressão, ao mesmo tempo que o inquiriam, experimentando-lhe a conduta:
— Mestre, esta mulher foi encontrada em adultério... A lei manda apedrejar. Tu, porém, que dizes?
O Mestre contemplou demoradamente os zeladores de Moisés, e, porque nada mais adiantaria explicar-lhes ao cérebro embotado de preconceitos, disse-lhes, alongando a palavra a todos os moralistas dos séculos porvindouros:
O Mestre contemplou demoradamente os zeladores de Moisés, e, porque nada mais adiantaria explicar-lhes ao cérebro embotado de preconceitos, disse-lhes, alongando a palavra a todos os moralistas dos séculos porvindouros:
— Quem estiver sem pecado, atire a primeira pedra!...
Jerusalém, agora, é o mundo!
Na praça extensa das convenções humanas, empenha-se o materialismo na dissolução dos valores morais, com escárnio manifesto à dignidade humana, enquanto religiões veneráveis digladiam com a Natureza, tentando, em vão, bloquear a vida, qual se quisessem ilaquear a si próprias. Ao tremendo conflito dessas forças gigantescas que lutam pelo domínio moral da Terra, enviaste, a Doutrina Espírita, em nome do Evangelho do Cristo, para asserenar os corações e comunicar-lhes que o amor é a essência do Universo; que as criaturas te nasceram do Álito divino para se amarem umas às outras; que o sexo é legado sublime e que
o lar é refúgio santificante, esclarecendo, porém, que o amor e O sexo plasmam responsabilidades naturais na consciência de cada um e que ninguém lesa alguém nos tesouros afetivos, sem dolorosas reparações.
Este volume pretende afirmar, ainda, que, se não podes subtrair os culpados às conseqüências do erro em que se tornaram incursos, não permites que os vencidos sejam desamparados, desde que te aceitem a luz retificadora para o caminho.Mostra que, em tua bênção, os delinquentes de ontem, hoje redimidos, se transfiguram em teus mensageiros de redenção para aqueles mesmos que lhes caíram, outrora, nas ciladas sombrias.
Abençoa, pois, o presente relato estuante de verdade e esperança, e, ao confiá-lo aos nossos irmãos do mundo, deixa possamos lembrar-lhes que a existência física, seja na infância ou na mocidade, na madureza ou na velhice, é sempre dom inefável que nos cabe honorificar e que, mesmo detendo um corpo carnal rastejante ou disforme, mutilado ou enfermiço, devemos repetir diante da tua Sabedoria Incomensurável:
— Obrigado, meu Deus!
EMMANUELUberaba, 4 de julho de 1963. (Página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier.)
Sexo e Destino
Sexo e destino, amor e consciência, liberdade e compromisso, culpa e resgate, lar e reencarnação constituem os temas deste livro, nascido na forja da realidade cotidiana.
Entretanto, leitor amigo, após a oração do benfeitor, que se pronunciou no limiar, nada mais nos compete que não seja entregar-te a narrativa que a Divina Providência nos permitiu alinhavar, não pelo exclusivo propósito de desnudar a verdade, mas sim no objetivo de aprender com a biblioteca da experiência.
Cremos seja desnecessário esclarecer que os nomes dos protagonistas desta história real foram substituídos por óbvias razões e que a presente biografia de grupo não pertence a outras criaturas senão a eles mesmos que no-la permitiram redigir, para a nossa edificação, depois de naturalmente consultados.
Solicitamos, ainda, permissão para dizer-te que não foi retirado um só til das verdades que a entretecem — verdades da verdade, que, fremindo de capítulo a capitulo, carreia consigo, em passagens numerosas, a luz de nossas esperanças e o amargo sabor de nossas lágrimas.
Uberaba, 4 de julho de 1963. (Página recebida pelo médium Waldo Vieira.)
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